Os escravos do Estado

O que é que um título como este pode despertar no leitor apanhado assim de surpresa? Muita coisa, bem sei, mas dificilmente a idéia de sermos todos nós, os cidadãos contribuintes, escravos do Estado. Todavia o somos. Quem garante isso é gente estudiosa, especialista em números, dados econômicos, porcentagens, comparações e outros mistérios do gênero.

Um desses estudiosos, também chegado a citações literárias, lembra-se até do nosso Euclides da Cunha e de sua mais gasta frase de efeito: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”. Não só a cita, como assegura que se Euclides fosse vivo e resolvesse  escrever outro livro de denúncia, já estaria até com o título pronto: Os Impostos. Daí a adaptação da frase euclidiana: “O contribuinte é, antes de tudo, um forte”. E explica tintim por tintim:

De 1.° de janeiro a 25 de maio deste ano da graça de 2006, os contribuintes brasileiros de classe média, estatisticamente considerados, terão trabalhado apenas para pagar os tributos federais, estaduais e municipais. Isso mesmo: cento e quarenta e cinco dias de labuta de um cidadão para satisfazer as exigências do fisco.  Incidem diretamente sobre o salário o imposto de renda e a contribuição à Previdência Social. Depois, vêm os tributos embutidos no que consumir, como o ICMS (estadual), o ISS (municipal), IPI, PIS, Cofins  (federais)... Pouca coisa escapa, nem pão, nem leite.  Se fumar e tomar seu uisquinho de vez em quando, então sua quota de participação será muito maior.

Se você acha isso um exagero, fique desde logo sabendo da verdade toda:

terminadas as obrigações diretas com os tributos, o homem brasileiro padronizado dedicará mais cento e treze dias do produto de seu labor para custear despesas com saúde, educação, previdência, segurança e pedágio, serviços que deveriam ser oferecidos adequadamente pelo Estado, sem custo extra.

Nem você nem eu sabíamos, mas existe um Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT) que pôs em circulação a expressão “escravidão do contribuinte” e a atribui a algo que sentimos na flor da pela a cada instante: a ineficiência  de tudo que haveria de funcionar sob os  bons cuidados estatais.

Por experiência pessoal, sempre pensei  que essa ineficiência fosse hoje mais evidente na educação ou na saúde, mas fico sabendo que, embora estes dois setores continuem com péssimos conceitos, o pior de todos passou a ser a segurança.

Tenho dificuldade em aceitar essa ruim presença do Estado em assuntos de tamanha importância, ainda mais que sou de um tempo em que tanto a educação quanto a saúde ofertadas pelos governos eram boas e em que pouco se pensava na segurança, ao menos nos termos atuais.

Vivi um tempo em que éramos felizes e não sabíamos numa porção de itens: eu e  meus contemporâneos só estudamos em escolas públicas. Do Grupo Escolar Dr. Cândido Rodrigues ou Tarquínio Cobra  (mais tarde  é que acrescentaram “Olyntho”)  saí eu, saíram meus colegas de turma e entramos no único ginásio existente na cidade  -- o Euclides da Cunha. Escolas particulares já nem existiam, e quando começaram de novo a existir, atenderam principalmente a alunos malsucedidos nas estaduais. Essa inversão de valores pela qual os que podem, hoje, fazem os cursos fundamental e médio nas particulares para, bem preparados, entrarem nas universidades públicas e gratuitas – isso é fenômeno recente. Sou de um tempo em que os professores primários e secundários exerciam influência positiva e decisiva na vida de cada estudante. Situação bem diferente agora, em que sequer se sabe o nome de quem leciona no ano, quanto mais os do ano passado ou retrasado. Ah, essa perda doconteúdo educacional das escolas públicas e do  prestígio de seus mestres foi desastrosa.

Ai de quem não esteja prevenido com algum plano particular de saúde!  Sou, contudo, de um belo tempo em que os servidores públicos estaduais tinham à sua disposição e de seus familiares os serviços do IAMSPE. Não só o então magnífico Hospital do Servidor, em São Paulo, mas em tantas cidades do interior. Nossos cinco filhos nasceram em confortáveis apartamentos no Hospital São Vicente, sem que nada pagássemos por isso, além dos dois por cento dos vencimentos mensais, já descontados em folha. Claro que o IAMSPE continua a existir, mas não aqui, não com a antiga qualidade dos serviços.

Pessoas como eu, que cuidam minimamente da segurança, devem estar sendo consideradas inconscientes  por não terem cercas elétricas, cães bravios, guardas particulares, coletes à prova de balas,  monitores de TV... No entanto, informa esse mesmo Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário que, ao menos nos grandes centros, gasta-se mais em segurança do que com educação e saúde... Uma distorção do sistema. Prova cabal da má presença do Estado: quanto maior a renda familiar, maior o percentual que as famílias despendem para garantir sua segurança. Ou seja, para se sentirem seguramente trancadas nos carros e nas casas, enquanto a delinqüência é que goza do direito de ir e vir, constitucionalmente assegurado (de mentirinha, em tantos casos) a todo e qualquer cidadão.

Quando se paga o IPVA – imposto sobre a propriedade de veículos automotores, pode-se ter a errônea impressão de que as obrigações decorrentes de pessoas terem um automóvel cessem por aí. Engano ledo e cego: apenas começam, porque você pagará licenciamento, pagará estacionamento nas ruas centrais e, principalmente, receberá facadas nas rodovias, com pedágios em média a cada cinqüenta quilômetros percorridos. Isso se você não cometer a imprudência de dirigir perto de um radar a 102 quilômetros por hora, quando a velocidade máxima permitida é de cem redondos! Aí a multa é de arrancar o couro e pode ser aplicada mais de uma vez na mesma viagem.

O estudo do IBPT não é apenas cheio de dados, mas também de comparações. Enquanto o cidadão brasileiro típico, de classe média, com renda familiar entre três mil e dez mil reais mensais, só vai começar a trabalhar  a 15 de setembro, para sua família comer, vestir, morar, comprar bens, gozar férias e poupar, os mexicanos, chilenos e argentinos (para não se referir injustamente a cidadãos do primeiro mundo de verdade) precisam de pouco mais da metade dos dias cobrados de nós aqui.

Fez muito sucesso, há mais de cinqüenta anos, uma frase dita em nossa Câmara Municipal por nobre vereador do então distrito do Sapecado:

-- Em minha casa, somos todos funcionários públicos. Conjuntamente usurpamos do Estado uma quantia que dá muito bem para nossa manutenção...

Claro que o ilustre edil empregou verbo errado. Quem sabe usufruir, em lugar de usurpar.

Hoje não. Hoje o Estado, como um todo, usurpa mesmo e emprega pessimamente quase tudo que arrecada do trabalho de todos nós, seus legítimos escravos.

 

27/05/2006
(emelauria@uol.com.br)

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