Três livros de peso (II)
Poucos textos suportaram tão bem, como este, os solavancos de se passarem com êxito de tese universitária a um alentado volume de interesse mais amplo. Seus dois primeiros capítulos (“Memória-sonho e Memória-trabalho” e “Tempo de lembrar”) são pura erudição, com a autora preocupada em justificar sua escolha de método e discutindo memória como categoria psicológica. Ela escreve muito mais para uma desfeita banca examinadora do que para um leitor menos especializado. Mas, à medida que vai desfilando as lembranças de personagens comuns, D. Alice e Sr. Amadeu, Sr. Ariosto e Sr. Abel, Sr. Antônio e D. Jovina, D. Brites e D. Risoleta, - Ecléa Bosi, professora de Psicologia Social da USP, consegue deixar de lado seus compromissos com a erudição própria da tese e se transforma, ela mesma, numa personagem-narradora do melhor estilo literário e apresenta com simplicidade e propriedade o objetivo de seu livro: dar voz à pessoa comum para contar sua história de sua cidade, bem diferente da versão dita oficial, aquela que se fixou nos jornais e livros e que, quase nunca, bate com o que João Alexandre Barbosa, prefaciador da obra, chama de psicologia do oprimido. Bem diferente, por exemplo, o relato histórico-jornalístico sobre um fato que mal aparece nos rodapés dos livros didáticos: o bombardeio a que foi submetida a cidade de São Paulo, durante a revolução de 1924. Resumo do fato histórico: Em comemoração ao segundo aniversário do episódio dos 18 do Forte de Copacabana (Rio de Janeiro), estourou um movimento revolucionário em São Paulo, a 5 de julho de 1924. A cidade foi ocupada pelos rebeldes durante 27 dias. As tropas legalistas, fiéis ao presidente Artur Bernardes, bombardearam a cidade, por terra e por ar. Os pontos mais atingidos foram os bairros operários da Mooca e do Brás e o de classe média – Perdizes. Sem poderio militar equivalente (artilharia e aviação) para enfrentar as tropas legalistas, os rebeldes retiraram-se para Bauru, onde planejaram um ataque à cidade de Três Lagoas, no atual estado de Mato Grosso do Sul. Lá sofreram total derrota. A rendição deu-se a 24 de agosto de 1924. Os remanescentes uniram-se em Foz do Iguaçu (Paraná) aos oficiais gaúchos comandados por Luís Carlos Prestes no que veio a ser o maior feito guerrilheiro no Brasil até então: a Coluna Prestes. Diferente o enfoque do Sr. Ariosto, nascido nas proximidades da Avenida Paulista, em 1900: Quando veio a Revolução de 24, disparavam os canhões nas travessas da Rua da Mooca. Lembro que todos os vizinhos rodeavam o tenente Cabanas, que era muito destemido, levavam comida para os soldados, ou iam levar o seu abraço. Nós víamos os petardos atravessarem as ruas; na igreja do Cambuci os soldados do governo acamparam e disparavam. Os revoltosos do Isidoro Dias Lopes e do tenente Cabanas atiravam do quartel da Rua Tabatinguera. O povo andava escondido, fugindo para outros bairros. O povo do Brás fugiu para onde pôde fugir: Penha, Belenzinho, Lapa. Os aviadores tiveram ordem de jogar bombas no Brás; diziam que a italianada estava a favor da revolução. Ficamos na Rua da Mooca, 82; durante a noite ouvia o tiroteio, os soldados correndo, as ordens do tenente Cabanas, o barulho era infernal. Meu irmão Amleto, depois de uma discussão com papai, se uniu aos revoltosos e partiu. (p.166) Não menos personalizado e pormenorizado o relato de D. Brites, nascida na Rua Maria Antônia, em 1903: A Revolução de 1924 começou num sábado, dia 5 de julho. Nós estávamos tranquilas em casa. Nossa mãe, que nunca saía de casa, tinha inventado de ir à feira, no Largo do Arouche.Começaram a falar que estava havendo correria de soldados na cidade. Quem estava em casa saiu à procura de mamãe. Achamos mamãe na feira, trouxemos mamãe para casa e sossegamos. E ficamos naquela expectativa. Já se sabe, tomamos logo o partido do Isidoro. Ninguém gostava do Bernardes porque 24 foi uma consequência de 22. De vez em quando se ouvia um tiro, a nossa casa era na Rua Barão de Tatuí, mas como não havia prédios, só residências, ouvia-se perfeitamente o tiroteio no Palácio dos Campos Elísios. Não se saía no quintal porque um dia estávamos brincando e veio uma bala perdida e bateu na parede. Mamãe estava espiando por uma gretinha na janela, gritamos: “Mamãe, por uma gretinha ainda entra uma bala!” (p.322) Ninguém mais sintético sobre o mesmo assunto do que o Sr. Antônio, nascido em Santa Rita do Passa-Quatro em 1903: Na Revolução de 24 eu era mocinho, de vez em quando havia tiroteios da artilharia, as balas vinham perdidas quando estávamos na rua jogando vinte-e-um, no baralho. (p.242) Desde seu lançamento, em 1979, este Memória e sociedade mereceu julgamentos críticos muito favoráveis, como os que transcrevo em seguida: Memória e sociedade me toca por muitas razões, a principal delas é que o tema envolve para mim uma carga enorme de poesia. (Carlos Drummond de Andrade) Lendo o seu Lembranças de velho, ganhei mais estímulo em continuar a escrever minhas lembranças de um mundo perdido. (Pedro Nava) Um admirável estudo sobre a memória, partindo de Lembranças de velhos. Acho que a autora inaugurou a sociologia da emoção: seu livro tem momentos de poesia, e todo ele é de uma rara sensibilidade em relação aos seres humanos, sobre os quais se debruça. (Flávio Rangel)
Nenhuma opinião mais abalizada, porém, que a de Marilena Chauí, que, além de ter integrado a comissão julgadora da tese universitária de Ecléa Bosi, ainda faz a apresentação do livro em foco. É dela este belo trecho:
Ecléa, o que você faz com o leitor? Não lhe dá – não nos dá – sossego. A cada passo, o seu texto derruba antigas balizas, desfaz nossas garantias, repõe o risco de pensamento e a tensão do agir-lembrar. Descrevendo a substância social da memória – a matéria lembrada – você nos mostra que o modo de lembrar é individual tanto quanto social: o grupo transmite, retém e reforça as lembranças, mas o recordador, ao trabalhá-las, vai paulatinamente individualizando a memória comunitária e, no que lembra e no como lembra, faz com que fique o que signifique. O tempo da memória é social, não só porque é o calendário do trabalho e da festa, do evento político e do fato insólito, mas também porque repercute no modo de lembrar. ( p.31 ) Enquanto delimito o trecho das páginas 443/444 com que fecharei esta breve resenha, inevitavelmente penso em como esta nossa São José do Rio Pardo é incoerente no tratamento do complicado assunto memória. Já está muito mais do que na hora de se organizar um tipo de museu da imagem e do som, de que o Centro da Memória Rio-Pardense é grande e decisivo passo. Além do rico acervo fotográfico, o Centro da Memória precisa expandir o setor de depoimentos pessoais em vídeo que falem da cidade ao longo de seus quase cento e cinquenta anos. Há poucos protestos quando por aqui se cometem verdadeiros crimes contra a memória da cidade, quando fica muito evidente o desinteresse da maioria na preservação de locais e de coisas que dão sentido à vida comunitária. Mas, ao mesmo tempo, estão em plena atividade pessoas e entidades muito preocupadas com todas as facetas do problema que, para muitos, nem existe, mas é fundamental na luta contra a descaracterização de prédios, praças, e de tudo aquilo que se pode chamar com muita propriedade de recantos cordiais. Daí a referência obrigatória que faço neste artigo a alguns dos mais empenhados guardiães da memória local: Eduardo Roxo Nobre, Rodolpho Del Guerra, Carmen Trovatto Maschietto e Francisco Braghetta. Mas vamos à essência da reflexão final de Ecléa Bosi:
AS PEDRAS DA CIDADE As lembranças que ouvimos de pessoas idosas têm assento nas pedras da cidade presentes em nossos afetos, de uma maneira bem mais entranhada do que podemos imaginar. Proust, sentindo a irregularidade do calçamento sob seus passos, recupera o tempo perdido (...) Através de um som, de um perfume, logo se libera a essência permanente das coisas, ordinariamente escondidas; o nosso verdadeiro eu, que parecia morto, por vezes havia muito, anima-se ao receber o celeste alimento que lhe trazem... Não procurara as duas pedras em que tropeçara no pátio. Mas o modo fortuito, inevitável porque surgira a sensação, constituía justamente uma prova da verdade do passado que ressuscitava, das imagens que desencadeava, pois percebemos seu esforço para aflorar à luz, sentimos a alegria do real capturado. O planejamento funcional combate esses recantos. Na sua preocupação contra os espaços inúteis, elimina as reentrâncias onde os párias se escondem do vento noturno, os batentes profundos das janelas dos ministérios onde os mendigos dormem. Mas a cidade conserva seus terrenos baldios, seus desvãos, o abrigo imemorial das pontes onde se pode estar quando se é estrangeiro e desgarrado.
27/02/2010
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