Cartas Brasileiras

 

Dentre os muitos livros que apareceram aqui por casa como resultado de amistosas  trocas de presentes na virada do ano, encantou-me um, que nem meu é; como raramente costumo fazer, requisitei-o para leitura imediata, o que fiz com gosto e presteza.

Seu título é o deste artigo, e não tem propriamente um autor, mas apenas um organizador – Sérgio Rodrigues, dono de ideia muito feliz: selecionou oitenta cartas dos mais variados assuntos e os enfeixou num alentado volume, de incomum formato,  com preço de capa de  nada menos de cem reais. Edição da Companhia de Letras, novembro de 2017.

Na contracapa externa uma explicação muito útil: trata-se de uma seleção espirituosa e diversificada de 80 cartas brasileiras inesquecíveis, fartamente ilustradas por fac-símiles das correspondências originais e dezenas de fotos. Cita alguns autores:  Olga Benário, Chico Buarque, Lampião, Renato Russo, Hilda Hilst, Ana Néri, Paulo Leminski, Ana Cristina César, Amélia de Leuchtenberg, Olavo Bilac, Clarice Lispector , Tarsila do Amaral, Dorival Caymmi, Lígia Clark, Santos Dumont, Pero Vaz de Caminha, Oscar Niemeyer, Maysa, Getúlio Vargas, Carlos Drummond de Andrade e D. Pedro II.

Se você, paciencioso leitor , nada souber de ao menos doze ou treze desses vinte e um nomes, então conforme-se com uma triste verdade: este livro não o interessará. Do alto dos meus quase oitenta e seis invernos, ainda nada sabia da tal Amélia .

O fato é que  nessas oitenta cartas há  de tudo, ou quase: intrigas,  ameaças, confissões desencantadas . Exemplos: uma declaração de amor da cantora Maysa, de vida infeliz;  uma carta escrita por Elis Regina e nunca enviada ao destinatário, o seu filho caçula;  o doloroso texto de despedida de Olga Benário (mulher de Luís Carlos Prestes) quando foi entregue pelos brasileiros à polícia nazista, que acabou matando-a.

Ah, duas versões da carta-testamento de Getúlio Vargas: na primeira linha do texto datilografado por pessoa íntima do presidente e encontrado junto ao corpo do suicida, está assim: “Deixo à sanha de meus inimigos o legado da minha morte.”   No texto manuscrito por Getúlio lê-se: “Deixo a sanha de meus inimigos, etc.” Ou seja : Getúlio não sabia crasear, o que não é nada surpreendente.

Sérgio Rodrigues, o organizador,  comenta que Cartas brasileiras é uma seleção eclética de incríveis missivas que se destacam como cápsulas do tempo. Escritores consagrados e amadores anônimos, homens e mulheres de épocas e profissões diversas nos contam como era o mundo visto de suas janelas, como era estar vivo e... escrevendo uma carta.

 Há a menina que pede ao presidente da República uma forcinha em seu trabalho escolar;  há um pedido de congregados marianos que, no auge da ditadura militar, cobram do ministro da Justiça mais rigor na censura à televisão...

E o bilhete semianalfabeto do cangaceiro Lampião ao prefeito da cidade alagoana que ele se preparava para saquear...

Vale a pena ler sobre o deslumbramento de Charles Darwin com a paisagem brasileira, bem como o pedido de ajuda que um inconfidente brasileiro faz a Thomas Jefferson, um dos fautores da independência norte-americana.

*

Civilizadíssima a reação do deposto imperador Pedro II a quem o avisou da proclamação da República e lhe deu exíguo prazo para sair do Brasil:

“Resolvo, cedendo ao império das circunstâncias,   com toda a minha família, partir para a Europa, deixando esta pátria, de nós tão estremecida. Conservarei do Brasil a mais saudosa lembrança, fazendo os mais ardentes votos por sua grandeza e prosperidade. Rio de Janeiro, 16 de novembro de 1889.  D. Pedro de Alcântara.”

*

Corajosa a carta de padre Cícero  Romão Batista a um dos coronéis do Nordeste: “É portadora desta D. Vicência Maria de Jesus , que informa ter moído umas canas  no engenho do Sr. e que o Sr. não quer entregar-lhe a sua parte, dizendo que toma em pagamento de dívida de outra pessoa. Uma causa tão fora de direito só acredito porque não ponho em dúvida a sinceridade de quem informa. Peço-lhe  pois entregar a parte que cabe à referida senhora. É crime e pecado tomar o alheio...”

*

Muito pessimista a opinião do grande escritor Lima Barreto sobre a má influência do futebol sobre a vida no Rio de Janeiro em 1922: “ O Rio não dá nada. O football veio

matar o pequeno interesse que ele tinha pelas coisas nobres do espírito humano. Football for ever!  Todos aqui estão convencidos que essa história de dar pontapés em bolas, quebrar canelas e braços é grego ou coisa que o valha, e eles levam a vida a cogitar nela, não tendo tempo para pensar em qualquer outra coisa.”     

E por último, o início da carta deixada pelo escritor alemão Stefan Zweig, que se matou junto com a mulher em Petrópolis, no ano  de 1942:

“ Antes de deixar a vida, de livre vontade e juízo perfeito, uma  última obrigação se me impõe: agradecer a este maravilhoso país, o Brasil.”

  

27/01/2018
emelauria@uol.com.br

Voltar