Trinta anos depois

 

            Na noite de  sábado, 13 de janeiro de 2007, por alguns momentos chegamos a pensar aqui em casa que seria inevitável a repetição do vivido a 19 de janeiro de 1977, o dia da enchente que os engenheiros da extinta CESP classificaram, com algum exagero, como decamilenar, isto é, com possibilidade de ocorrência de dez mil  em dez mil  anos.

            Com aquela chuvarada toda, as águas ganharam  volume que foi demasiado para bueiros entupidos e galerias pluviais subdimensionadas.

            Dizem as boas línguas que aquele diluviozinho caiu em atendimento às  fervorosas preces dos nossos vizinhos, muito preocupados com a barulheira prevista no show da banda “Inimigos do H.P.”, nas piscinas do Rio Pardo Futebol Clube. Eles simplesmente desejavam que não houvesse o show, que acabou acontecendo debaixo de muita água. Para dizer a verdade, não sei se por surdez ou pela boa disposição dos quartos de dormir, aqui em casa ninguém perdeu o sono. Há quem não acredite nisso, mas não estou mentindo. Na manhã seguinte, vi as caras amarrotadas de pessoas da vizinhança, que não pregaram os olhos, tal a barulheira do “disk jockey” e daquele conjunto com seus megabéis escancarados.

            Por cerca de quinze minutos a rua, nas proximidades da ponte,  se transformou num mar revolto, assustando os moradores das casas mais baixas e às pessoas que pela primeira vez assistiam àquela braveza toda de um corguinho cuja presença nem é considerada  porque muros altos e vegetação densa não o deixam ser visto. Percebe-se a sua existência apenas pelo mau cheiro que quase sempre exala. Afinal, é esgoto a céu aberto.

            Sabe-se bem por que a Várzea ficou inundada em 19 de janeiro de  1977: pela estreiteza  das pontes, pela  queda de uma delas, a da  Avenida Comendador Luís Gonçalves Júnior  (no caminho do cemitério) e pelo acúmulo do material de construção de viaduto no prolongamento da Campos Sales. Tanto que, restabelecido o fluxo da correnteza com a erosão feita pelas águas nos dois locais que lhes impediam a livre passagem, em poucos minutos a rua e a praça da Várzea estavam drenadas e cada morador já pôde começar o penoso serviço de limpeza e de aproveitamento do que havia sobrado.

            A casa em que moramos há quase setenta anos só foi atingida por enchente naquele 19 de janeiro de trinta anos atrás. Serviu, em outros tempos, de provisório abrigo de moradores de outros imóveis imprudentemente construídos na própria área de escape das águas do córrego. Haverá quem se lembre de uma casa que ficava em cima do córrego, com duas entradas, uma para cada margem. Acabou sendo atingida por enchente anterior à de 1977  e logo posta abaixo. Nunca atinei com a razão de se construir aquela casa, com tanto espaço sobrando por aí, ainda mais naqueles recuados tempos. Hoje ela seria legalmente inviável.

            Eu me lembro das providências que pudemos tomar, em 77,  assim que as águas baixaram. A primeira delas, lavar a casa toda,  para evitar os efeitos nocivos daquelas águas barrentas. Havia muita gente ajudando, em poucos minutos não ficou marca alguma  da surpreendente invasão. Foi tão oportuna a rapidez das iniciativas, que nada perdemos, nem mesmo os pisos de sinteco, só reformados bem recentemente. Vizinhos que deixaram para o dia seguinte a remoção da lama tiveram de trocar assoalhos, além de  perder móveis e conviver com outras marcas   deixadas pela inesperada inundação.

Mas em nosso caso particular não houve  medo de enchente a 20 de janeiro de 2007, porque a vazão dos córregos foi total, com a água começando a ser represada apenas nas proximidades da Rua Marechal Deodoro. Contudo,  era de geral apreensão o clima da cidade, com tanta gente se lembrando ainda das trágicas conseqüências da cheia de 77, que deixou profundas seqüelas,  a maior delas o começo do fim da estrada de ferro, perda até hoje não assimilada por tantos.

Como gracejo, pude dizer na palestra que dei na Biblioteca Monteiro Lobato nas comemorações do aniversário de nascimento de Euclides da Cunha, a 20 de janeiro agora, que seria importante uma enchente do rio Pardo num dia 15 de agosto: só assim o Recanto Euclidiano e suas imediações  voltariam a ter um público numeroso, em clima de turismo cultural...  De fato, a beira do rio Pardo ficou movimentadíssima no final da semana, atraindo curiosos de todas as procedências. E a ponte metálica, com seus quase cento e seis anos,  servindo de privilegiado e confiável posto de observação.

Freqüentador assíduo da área de lazer situada atrás do ginásio de esportes (local ótimo para caminhadas e muito bem sombreado), vi o nível atingido pelas águas e os estragos que devem ter feito, principalmente no barranco onde se reuniam todos os dias dezenas de esforçados pescadores.  O caminho mais próximo ao rio deve ter desaparecido. Merece recomposição.

Vi a desolação da ilha São Pedro e sua ponte pênsil derrotada pelas águas. Vi o sinal da cheia nas casas alcançadas pelo volume da torrente formada principalmente pela abertura das comportas de Caconde. Vi também como isso foi providencial. Se tivessem aberto a tempo, em 77,  Euclides da Cunha e Limoeiro, não teria ocorrido tanta devastação.

No domingo, 21, também fui ver o magnífico espetáculo das águas em fúria saindo pelo vertedouro da barragem da Euclides da Cunha. De um lado, o calmo lago aumentado em sua extensão pelas águas retidas. De outro, as águas violentas, barulhentas, formando aquele jorro espumante e aquela garoa fina, em que a luz do sol criava instantâneos arco-íris. Por instantes, guardadas as proporções, chegava-se a comparar aquilo tudo com a terrível beleza das cataratas do Iguaçu.

Quem não teve minuto algum de sossego para apreciar espetáculos proporcionados por águas revoltas foi o prefeito João Santurbano.

Conversei com ele na noite de sábado, depois de minha palestra na Biblioteca Municipal. Ele dava sinais do cansaço, inevitável para quem ficou em permanente estado de alerta  em face do que acontecera e do que poderia ter acontecido. Como sempre, o maior problema decorrente das cheias do rio Pardo é o prejuízo à captação da água para tratamento e distribuição na cidade toda. Com o arcaico sistema de fornecimento de água pelo próprio  município, há poucos recursos disponíveis. O prefeito se torna o catalisador de todas  as más notícias. É bomba que queima, é adutora que arrebenta, é inundação aqui, é colapso de abastecimento ali.  Não estaria na hora de se pensar em solução mais adequada? Não estaria na hora de modernizar tudo nesse crucial setor da administração municipal? Bastaria lembrar que os municípios de  São João da Boa Vista, Mococa, Itobi e Divinolândia  são servidos pela Sabesp.

Vereador à época da enchente de 1977, acompanhei o trabalho ingente que foi restabelecer o fornecimento de água à cidade toda. Curiosamente, naquele 19 de janeiro, as preocupações e as responsabilidades  foram divididas e assumidas por três prefeitos: Lupércio Torres, mesmo licenciado, fazendo-se presente em todas as fases daquela situação angustiosa; Azael da Costa Figo, presidente da Câmara e prefeito em exercício; Richard Celso Amato, prefeito eleito, que tomaria posse a 31 daquele mês.

                        Foram esquecidas diferenças políticas e divergências partidárias e se pôde sentir a mais completa solidariedade de que se tem notícia nesta cidade.

 

27/01/2007
(emelauria@uol.com.br)

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