Carpe diem Causou-me espanto, um dia destes, ver tatuada no braço de uma bela moça a frase latina carpe diem, inventada há mais de dois mil anos pelo poeta Horácio: colhe o dia, confia o mínimo no amanhã... Com certeza, a jovem se deixou levar pelo errôneo uso que se faz dela na atualidade. De fato, emprega-se o carpe diem a propósito do tudo, subjacente na maioria das vezes a ideia de que é necessário gozar a vida, a qualquer preço. Se existe restaurante com este nome, também existe perfume para homem... Um iate de luxo foi assim batizado, como também uma livraria o adotou por adequado título... Motéis e casas de diversões se encantaram com a denominação, portadora de promessas mil. O que contribuiu de forma decisiva para a recolocação em voga desta expressão a um tempo breve, sonora e um tanto misteriosa foi o bem-sucedido filme “Sociedade dos Poetas Mortos”, de 1989, dirigido por Peter Weir e protagonizado pelo finado Robin Williams. Carpe é forma imperativa do verbo cárpere (= colher, aproveitar) e diem é o acusativo do substantivo dies, diei, da 5.ª declinação latina. Literalmente quer dizer “colhe o dia”, mas admite uma interpretação mais elástica: “aproveita o dia de hoje”, ou de modo mais livre ainda: “colhe o dia de hoje como se fosse um fruto maduro que amanhã estará podre”. Deixando-se de lado qualquer conotação de hedonismo, de busca do prazer imediato, sem medo do futuro, que o texto horaciano absolutamente não sugere, pode-se afirmar que o espírito da frase, conhecido o seu contexto, é algo como aproveita as oportunidades que a vida te oferece no momento em que elas se apresentam. Ou em outras palavras: a felicidade está no regrado uso dos bens da vida. Lembro-me, com saudade até, de um alentado estudo que fiz desse texto latino (isso já vai para uns trinta anos), que mereceu destacada publicação no “Suplemento Literário” do jornal Minas Gerais, onde pontificava a autoridade e o prestígio de Wilson Castelo Branco, que gostava de meus escritos e ainda pagava muito bem a colaboração, notadamente se o assunto dissesse respeito a Euclides da Cunha, uma de suas permanentes admirações. O texto integral está no meu livro Tempo ao tempo. Leio que existe na literatura chinesa um verso com esta recomendação: “Colhe a flor quando florescer: não esperes até não haver mais flores, só galhos a serem partidos”... Mas o espírito da ode horaciana cai particularmente bem entre os árcades, poetas do Neoclassicismo do século XVIII, que pregam o retorno à vida simples dos pastores da Arcádia (região da Grécia) e a fruição de todas as coisas naturais que a vida possa oferecer. Eles expressam constantemente a certeza que têm a respeito da fugacidade das horas. Daí o apelo, muito sentido em Tomás Antônio Gonzaga que, como Dirceu, na força dos seus quarenta e tantos anos, insiste com Marília, sua adolescente musa, a não perderem tempo, aquele tempo que fugia célere.
Que havemos de esperar, Marília bela? Que vão passando os florescentes dias? As glórias que vêm tarde já vêm frias, E pode, enfim, mudar-se nossa estrela. Ah! Não, minha Marília, Aproveite-se o tempo, antes que faça O estrago de roubar ao corpo as forças, E ao semblante a graça! (Final da Lira XIV)
Os temores de Dirceu acabaram por se concretizar: ele, magistrado, preso por causa de sua participação na Inconfidência Mineira, mais tarde degredado para a África, onde reorganizou a vida. Ela, em Vila Rica, atual Ouro Preto, eternamente à espera do amado, até que morreu em idade avançada. E virgem. Na poesia de Gonzaga (o mais lido dos poetas de língua portuguesa, depois de Camões) são constantes os traços do horacismo temático: “Sobre as nossas cabeças, / sem que o possam deter, /o tempo corre...” – Ou: “ da pálida morte a mão tirana/ arrasa os edifícios dos Augustos,/ e arrasa a vil choupana...” Carpe diem, Baby foi música de sucesso da banda Metallica em 1997: o ouvinte é encorajado a espremer e chupar o dia ( squeeze and suck the day). Por último a banda Dream Theater mostra sua adesão à filosofia do prazer no disco A change of seasons (uma mudança de estações), onde chega a incluir falas do filme “Sociedade dos Poetas Mortos”. É de se refletir sobre o longo caminho percorrido pela singela e bimilenar expressão que, engendrada numa ode por Horácio, ainda impressiona aquelas muitas pessoas para as quais a valorização do instante, sem apego ao passado e sem medo algum de caminhar para o futuro, é o único modo de se dar a cada segundo da vida o seu sentido mais profundo, porque na verdade é esse precário presente o único tempo disponível pelo homem. De se considerar, portanto, a notável expressão de Santo Tomás de Aquino ao identificar o tempo como a própria vida da alma que se estende para o passado e para o futuro. De que modo – pergunta ele – diminui-se e consuma-se o futuro que ainda não existe? E de que modo cresce o passado que não é mais, senão porque na alma existem as três coisas - passado, presente e futuro? Ao homem, através dos séculos, só tem sido dado abismar-se ante esses problemas insolúveis e dar ao presente o máximo de seu valor. Carpe diem, pois.
26/11/2016 |