A visita do Mequetrefe

 
O pé da Paineira

 

Não vá você me dizer que sabe o significado desse termo mequetrefe aí do título. Fazia séculos que eu não o ouvia, embora me lembrasse das circunstâncias de seu emprego inaugural.

Era na aula de Português, terceira série ginasial, no "Euclides da Cunha" - isso já beira os setenta anos. O  temido professor que chegava a dar notas negativas em certas redações, com o aluno ficando a lhe dever uns pontos, descontáveis na primeira oportunidade, estava lá metido com seus problemas inacabáveis com o pronome SE, quando ouviu gostosa risada vinda do fundo da classe. Interrompeu a preleção, circunvagou o olhar pela sala com quarenta meninotes e uns cinco taludinhos. Fixou a vista no Castro e fez a pergunta que já trazia embutida a resposta:

- Foi o senhor, seu Castro?

- Foi o senhor, seu Castro? (A voz tinha subido perigosamente de tom.)

- Fui eu, professor, me desculpe...

- Desculpo nada,  seu tranca, seu biltre, seu mequetrefe! Ponha-se daqui pra fora, entenda-se lá com o Franzé! (Era o inspetor de alunos, com admirável disposição sádica.)

Mequetrefe soou mais forte do que tranca e biltre, e foi assim que Pedro Oliveira Castro, dos quarenta meninotes,  um quase santinho, perdeu seu nome de batismo e para nós  passou a ser irremissivelmente o Mequetrefe. Ninguém ainda pensava na existência e nos estragos de um bullying.

 

Pois não é que um dia destes, ao cair da tarde, recebo telefonema  de um tal Pedro Castro querendo falar comigo.

- Pedro Castro?

- Sim, Pedro Castro. Pedro de Oliveira Castro, lembra-se?

- Não...

- E do Mequetrefe você se lembra?

- Mequetrefe... Aquele do ginásio?

- Isso! O Mequetrefe...

- Mequetrefe... Quanto tempo! Como o apelido pegou!

- Pra dizer a verdade, só na escola me chamavam assim. Minha mãe detestava isso, meu pai pensou em ir tirar satisfações   com o professor, mas acabamos indo embora daqui e o apelido deixou de ser usado.

- Mequetrefe... Quem diria... Você deve ser da minha idade, não é?

- Sou do finzinho de 31...

- Sou do comecinho de 32...

- É isso. Estamos os dois na fila do gargarejo.

 

Divorciado há muito tempo, com filhos e netos que lhe dão pouca atenção, certamente porque também não a receberam, Mequetrefe  vai pulando de  galho em galho, vivendo sem miséria  com sua aposentadoria, não deitando raízes profundas em nenhum lugar. Considera-se um espírito livre, de bem com a vida e com disposição  para comer, beber, conversar, passear, viver algumas aventuras, hoje muito mais na imaginação do que no real dos fatos.

 

Essas coisas todas fiquei sabendo ao longo das tantas conversas que travamos  aqui em casa ou em lugares públicos  de pouco movimento, ao longo das quase duas semanas que Mequetrefe suportou ficar em São José do Rio Pardo, sempre a me interrogar como pude ficar por aqui, nesta paradeira de vida.

 

Um dia, em que papeávamos aqui na minha biblioteca, ele consultou o Dicionário Aurélio para saber com exatidão o que significavam aquelas três palavras com que o professor da terceira série o caracterizara:

 

Tranca - ordinário, de mau caráter.

Biltre - abjeto, infame.

Mequetrefe - indivíduo que se mete onde não é chamado, joão-ninguém, biltre, patife.

 

Seu comentário foi curto e sentido:

- Não fui nada disso na vida. O professor podia ter bom vocabulário, mas não soube a meu respeito empregar as palavras com justiça. Foi um mau profeta.

Não se tocou mais no assunto e eu redobrei meus cuidados de só tratá-lo por Pedro.

 

Depois de um lanchinho no começo de certa noite, saímos os dois a pé pelas ruas do centro. Ele quis rever a casa onde sua família morara por último. Nem sinal dela. Em seu lugar, uma das tantas lojas  que dominam a Rua Francisquinho Dias, para meu amigo Pedro ainda a Rua João Pessoa. Penso cá comigo que no miolo da Francisquinho Dias quase ninguém mais mora, os cômodos de frente viraram pontos de comércio. Dizem que ali a valorização imobiliária é de espantar.

 

Mequetrefe/Pedro perguntou por alguns colegas de nossa classe: ficou surpreso e temeroso quando notou que minhas respostas eram quase sempre morreu... morreu.

E de fato é assim: uns há muito tempo, como Júlio Darin e Álvaro Roque da Silva;  outros recentemente, como Waldemar Jorge, José Carneiro de Araújo Filho  e Râmisa Jorge.

Deveu-se ao perspicaz Zé Carneiro  esta fina observação sociofilosófica, emitida anos atrás:

"Márcio, nossa terceira série foi demais. Deu alguns doutores e diversos presidiários!"

 

Mequetrefe/Pedro tirou rápido sua conclusão:

- Se os alunos já morreram quase todos, professor não deve ter sobrado nenhum...

- Nenhum, mesmo. Os mais resistentes foram Vinício e Hersílio, este o dono do amplo vocabulário xingativo.

- Vamos ver se você tem boa memória, desafiou-me ele. Diga aí os nomes dos professores que mereceram de nós esses apelidos:  Xexê, Meleca, Bundinha, Carretão, Peitinho, Bié, Manga-larga...

Eu sabia todos, mas hoje meu computador será um túmulo.

- Que fim levou a mais bonitinha de nossas colegas, aquela que tinha cara de legítima sapeca, que provocava até o professor de Ciências?

- Ah, sei. Foi embora daqui, casou, descasou, recasou e morreu atropelada.

- E aquela loirinha, quietinha, com jeito de sonsa, que tinha bela voz?

- Jogou-se da ponte e morreu afogada no rio Pardo...

- E aquela moreninha, ajeitadinha, que tinha um irmão em nossa classe?

- Fiquei casado com ela mais de cinquenta anos... Morreu há quatro e meio.

- Não diga!!! Meus sentimentos...

- Agora é tarde.

Para evitar maior mortandade, meu visitante não perguntou sobre mais ninguém.

 

Aos poucos, fui sabendo de alguns lances de sua vida, cheia de aventuras, de altos e baixos.

- Prestei concurso para policial federal e desde logo meus superiores souberam que eu estava disposto a topar qualquer parada, em qualquer lugar do país. Conhece Palmeira dos Índios?

- Sei que é a terra natal de Graciliano Ramos, em Alagoas.

- A localização está certa, mas você não conhece Palmeira dos Índios e eu não sei quem é Graciliano Ramos... Estamos quites.  Conhece Mazagão?

- Não.

- Fica no Amapá. Quando conheci a cidade, o Amapá nem era estado e sim território.

 

Procuro criar um obstáculo a tanto conhecimento e vou fundo:

- Conhece Canudos?

- Canudos... Canudos. Ah, claro. Fica no sertão da Bahia.  Fui lá num período de seca das brabas  e a  primitiva cidade, que tinha sido submersa pelas águas de uma enorme represa, apareceu de novo.

- Foi lá que se deu...

O visitante me interrompeu e me fez saber por vias indiretas e de modo definitivo que ele contava e que eu só ouvia, porque ele vivera, experimentara, enquanto eu só ouvira dizer ou lera.

 

Pessoas de certa idade quase sempre ficam egocêntricas, rabujentas e extremamente rememorativas.

 

Percebi que Mequetrefe queria pular para um novo capítulo de sua vida aventuresca: suas estripulias amorosas. Fica para uma próxima vez, quem sabe.

 

26/10/2013
emelauria@uol.com.br

 

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