Horas de saudade
É de abril de 2014 minha crônica sobre o fechamento da banca de jornais e revistas que Baptista Folharini e o filho Batistinha mantiveram por muitos anos em diferentes pontos da cidade. Em tempos mais recentes, os dois se queixavam da grande redução das vendas, causada não apenas pelas mudanças de hábitos das pessoas, mas também pela própria localização da loja e pela inexorável passagem do tempo. Leitores velhos morrem; leitores novos são raridade. Antes instalado em pontos comercialmente favoráveis, a banca, que virou o nosso Centro Cultural, era de fácil acesso e bastante convidativo à sua predominante clientela feminina e de homens já maduros em idade. Sua mudança para a Rodoviária fez com que, seja pela distância, seja pelo desconforto, muita gente deixasse de cultivar o hábito-obrigação de dar um pulinho até lá. * Grandes amizades e amáveis convívios tiveram origem no CCBF, ponto de encontros diários para um bom número de pessoas: lá sempre havia alguém disposto a um papo, a um comentário, a uma observação sobre os mais variados assuntos. Todos podiam falar livremente, a favor ou contra, desde que respeitassem a regra de ouro: ninguém podia demorar mais de minuto e meio (noventa segundos) em sua intervenção. E a limitação fazia sentido, porque pessoas que não conseguem dar um bom recado em curto espaço de tempo, o melhor que fazem é não abrir a boca. * Se não houvesse assunto em pauta, podia-se apelar para as manjadas histórias que o Baptista repetia, sempre com inovação e propriedade. Ou ainda: podia-se falar mal do dono da loja, que jamais cumpriu solenes promessas de fornecer cadeiras decentes para os frequentadores, ou água gelada, ou ainda um cafezinho passado na hora. * Já faz um bom número de anos que mandei confeccionar uma plaqueta com a inscrição Centro Cultural Baptista Folharini, usando de propósito um tipo de letra manuscrita que permitia, com certa imaginação, ler também Antro Cultural, para deixar bem claro que ali cabia perfeitamente um comentário meio ferino, uma observação um tanto maliciosa, um caso relatado com um grãozinho de sal, até com desrespeito à verdade sem graça e sem imaginação. Durante um bom tempo, minhas idas ao Centro/Antro eram diárias, ainda mais que podia ter a certeza de lá me encontrar com Gildo Bertocco, com Mário Maríngolo, e com outros poucos infalíveis. Faço destes dois confrades os melhores representantes de tantos sobreviventes ou de outros já convidados para a grande e final viagem. * O elemento que aglutinava pessoas de formação e atitudes tão diferentes sempre foi o próprio Baptista, inteligência vivaz, dotada de senso de humor e grande capacidade de representação cênica. Para ele não vigorava a lei dos noventa segundos. Ao contrário, seus ouvintes queriam que ele enrolasse, aumentasse, inventasse. Não há, dentre os frequentadores assíduos, quem não tenha rido pela décima vez da mesma história contada pelo Baptista, com suas inflexões de voz, com seus gestos teatrais e suas inovações em cada narrativa. Provoco uma rememoração que só alguns compreenderão: a sempre repetida história do pedreiro que consertava calçadas num bairro afastado. No calor da tarde, ele ia tomar água de uma torneira qualquer, quando... Paro por aqui. Afinal, é história bem escabrosa. * Quem sempre estava por lá era Sigmundo Gargitter, leal amigo de Baptista e por certo um dos que muito sentiram o fechamento da loja. Aos sábados, eu notava a constante presença de José Fecchio e Roberto Chaim. * Pois não é que no domingo, 20 de setembro, por artes do Batistinha o nosso pranteado Centro Cultural Baptista Folharini teve movimentada e concorrida sessão, nos melhores moldes de passados tempos? O pretexto para a reunião bissexta foi o aniversário do Baptista, que garante estar completando oitenta e seis primaveras, embora haja controvérsias a respeito. Uns exagerados andam dizendo que ele vem escondendo ao menos uns cinco aninhos. Quem saberá ao certo, sem recorrer ao Cartório do Registro Civil? * Quatro pessoas foram escolhidas por Batistinha para almoçar com o ancião aniversariante, a saber: Gildo Bertocco, Sigmundo Gargitter, Vladimir Massaro e eu. Nunca podíamos imaginar quanto os filhos, as noras e os netos do provecto senhor iriam caprichar em matéria de atenções e gentilezas, de comes e bebes. Um primor. Estava tudo tão bom, que houve longos momentos em que ninguém falava, sem dúvida a melhor prova das delícias do cardápio. * Durante mais de duas horas, o espírito do CCBF prevaleceu em todos nós, de maneira que cada um pôde exercer em plenitude o que mais gostava: o direito de criticar, de falar mais mal do que bem de companheiros, de relembrar pessoas e fatos, de reviver com sincera saudade nossos passados, cada vez mais desfalcados de tantas presenças notáveis que já se foram desta para melhor. O que não faltou foi motivo de risos, até para escândalo dos presentes que não conheciam as peculiaridades da nossa duradoura convivência. * Claro que o que mais se lembrou foram os muitos lances da vida de Baptista e suas peculiares maneiras de fazer amigos e influenciar pessoas. Quem, por exemplo, teve a gentileza de fazer as quatro séries do ensino primário em oito anos, pelo prazer de ter muitos colegas? Só o Baptista. Eu mesmo fui colega dele numa classe de D.Laudelina. Quem foi juntando, com paciência e aplicação, uns alfinetes hoje, tubinhos de retroses amanhã, dez agulhas a semana seguinte, uma caixinha de botões aqui – e assim formando o estoque com que abriu sua loja de aviamentos? Ele ouviu todas essas repetidas gozações e replicava com pesadas cargas contra duas pessoas: meu primo Gildo e contra mim mesmo. Muitas histórias inventadas ou aumentadas a nosso respeito ganharam novas versões e fizeram sucesso no almoço de domingo passado. * Um belo reencontro que nos deixou de coração feliz e alma leve. Quem sabe a moda pega e o Centro Cultural Baptista Folharini reabre de vez em quando as suas emperradas portas?
26/09/2015 |