Causos do quotidiano

 
Casebre já demolido no começo da Rua Tarquínio Cobra Olyntho, na Vila Pereira.
Óleo de Arsênio Frigo a partir de foto de Márcio José Lauria

 

O SUJEITO (IM)PREVIDENTE

O casamento deles não ia bem. Tanto é que a separação foi consensual, sem maiores dramas. Cada um para seu lado, e pronto.

O homem, trabalhador dos bons, logo se ajeitou com outra, que o ajudava muito em suas vendas e compras. O negócio ganhou vulto, tudo ia de vento em popa. Ideia inevitável: comprar uma casa, nada de continuar pagando aluguel pelo barraco na avenida onde antigamente os trens passavam.

Escolhida a casa, bateu nele a dúvida cruel: se o imóvel fosse registrado em seu nome, sua legítima mulher poderia pleitear metade dele, no caso de falecimento do ainda legítimo marido.

Solução que lhe ocorreu numa noite de insônia: colocar a atual companheira como proprietária única da casa.

Não houve mesmo problema, enquanto ela, a companheira, não resolveu morrer, assim sem mais nem menos. Morreu sem ter ficado doente, coisa de infarto fulminante.

Ele chorou muito aquela morte fora do programa; menos, porém, de quanto chorou ao receber dos irmãos da falecida a intimação. Que saísse logo da casa, legitimamente herdada da pranteada irmã!

 

O PODEROSO PADRINHO

Foi sem surpresa que recebeu mais um convite para crismar o filho de um velho conhecido. Combinaram tudo direitinho, o encontro na igreja, etc.

O problema foi que o bispo só poderia estar na cidade no domingo à tarde, exatamente o melhor dia e a melhor hora para o pôquer no clube.

Não deixou de ir ao jogo, certo de que na hora necessária ele daria um pulo até a igreja, situada ali pertinho.

De fato, deu o pulo até a igreja, mas tudo ali estava terminado. A um canto, desenxabido, seu amigo e quase compadre acompanhando o rapazinho, todo constrangido com o descaso do quase padrinho.

- Olhem, não fiquem preocupados. Vou ver se ainda encontro o bispo.

Mais perto do que o clube, a casa paroquial. No terracinho lá estavam papeando o bispo e o vigário, que de vez em quando também arriscava umas incursões no tentador mundo das damas, valetes e reis.

Chegou todo respeitoso, explicou a situação e recebeu do bispo a esperada negativa. Aí lançou mão do argumento guardado na manga do paletó:

- O que é que se vai fazer? É mesmo uma pena, a crisma do menino fica pra outra oportunidade. É uma pena, porque minha tenção era não só dar um dinheirinho pro rapaz, mas também para as obras de reforma da igreja...

O vigário olhou pro bispo, que olhou pro vigário.

- Em consideração à amizade do Sr. com o vigário aqui, vou abrir uma exceção. O rapaz está onde?

- Lá na igreja, todo sem graça.

- Então vamos todos pra lá resolver logo essa trapalhada sua.

O rapazinho foi crismado, o padrinho cumpriu suas promessas, todos ficaram muito felizes. Mais feliz ainda a família do novo compadre, que recebeu duas fichas daquelas bem grandes, de alto valor.

- Quando tiver um tempinho, compadre, vá até o clube e peça a alguém que lhe pague o valor dessas fichinhas.

 

MÉTODO INFALÍVEL DE FECHAR NEGÓCIO ENROLADO

O protagonista deste causo, filho único, cheio de mimos e afagos, não se deu bem no casamento. Sentiu muito a morte prematura do pai, e menos a morte anunciada da mãe. Herdou umas coisinhas, mas principalmente a boa casa da família.

Nem será preciso dizer que, viciado no jogo, achou muito natural vender a casa, que compradores não faltavam.

Fechou negócio a prestação com um sujeito bom pagador, que só pôde comprá-la em dez pagamentos. O preço final foi acertado.

Pagas as dez promissórias, que saíram pelo ralo nas mesas de jogo, chegou a hora de se passar a escritura.

- Eu só passo a escritura se você me pagar o valor de mais uma prestação...

O comprador, temeroso de perder o dinheiro e o bom negócio feito, submeteu-se à vontade do vendedor, tomando dinheiro emprestado a um tio.

Na hora de passar a escritura, outra exigência:

- Eu só passo a escritura se você me pagar outra parcela...

O comprador achou aquilo um desaforo e foi se aconselhar com o tio financiador.

- Pode deixar comigo. Vou falar com aquele safado.

- Quero falar com você.

- Agora eu não posso, estou numa parada grossa.

- Não pode? Pode sim! Se não for por bem, vai a chicotadas.

E bateu com um grosso rabo de tatu na mesa de jogo, espantando os parceiros, espalhando fichas e esparramando cartas para todos os lados.

E lá se foi o nosso herói caminhando pelas ruas, sempre acompanhado muito de perto pelo seu algoz, de rabo de tatu em punho, e em cima de vistoso cavalo.

No cartório, em completo silêncio, nada mais exigiu e assinou depressinha a escritura de compra e venda de imóvel situado na rua tal, número tal.

 

26/08/2017
emelauria@uol.com.br

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