SAUDADES DO RIO

            Deve ser a influência do mar, do ar carregado de sal, do vento que vem de muito longe. A verdade é que  os mesmos fatos tratados por jornais do Rio e de São Paulo dão textos bem diferentes, como se em São Paulo até as coisas leves devessem ficar pesadas, e no Rio até as pesadas devessem ganhar sempre o toque da leveza carioca.

            Não é de hoje que se observa essa distinção fundamental entre os jornalistas e até mesmo os escritores das duas cidades. Imagino que boa parte do senso de humor e da fina ironia de um Machado de Assis tem muito que ver com sua carioquice, do mesmo modo que ainda um escritor refinado como Mário de Andrade jamais perde algo que se poderia chamar paulistanismo, com licença de eu empregar termos não dicionarizados, que eu saiba. Tento explicar melhor: um mestiço raquítico, epilético, gago, nascido no Rio de Janeiro de pai pintor de paredes e mãe lavadeira, lá pelos meados do século XIX, pôde chegar à condição de maior escritor brasileiro, aceito social e culturalmente, elevado às culminâncias  de presidente perpétuo da Academia Brasileira de Letras. Se Machado tivesse nascido em São Paulo, não sei se venceria as suas naturais barreiras, além daquelas que lhe ergueriam os aristocratas provincianos,  com tantos fumos de nobreza. Em contrapartida, Mário de Andrade, tão à vontade em sua paulicéia desvairada, jamais se acostumou ao clima do Rio, onde trabalhou a contragosto,  por breve período.

            Estudei no Rio de Janeiro, mais especificamente na Universidade Federal Fluminense, em Niterói, do outro lado da baía da Guanabara, num tempo em que as duas cidades e seus habitantes eram muito parecidos entre si. Hoje não sei, porque os morros cariocas ditaram outros estilos de  comportamento. Guardo das pessoas de lá uma forte impressão de bom humor, de otimismo, de esperança, de capacidade de superiormente enfrentar as durezas todas da vida.

 Niterói, até 1960 capital do estado do Rio de Janeiro, mas também cidade-dormitório de milhares que todos os dias faziam a agradável travessia nas barcas para mais de mil passageiros e uma centena de veículos, que saíam da Praça Araribóia e atracavam no cais da Praça 15, no Rio . Eu conheci praias dos dois lados da baía, museus, imensos jardins,  lugares civilizados, como as avenidas Rio Branco e Amaral Peixoto, o Aterro do Flamengo, o Campo de São Bento, além, é claro, daqueles lugares cinematográficos célebres no mundo todo, do tipo do Pão de Açúcar, do Corcovado. Não me lembro de uma vez sequer ter pedido informação a qualquer passante sem ser cortesmente atendido e, até, acompanhado em parte do trajeto por mim ignorado. O modo de eles informarem era inconfundível: “Você dobra à direita, depois à esquerda e anda toda a vida, até encontrar uma paineira”...

            Freqüentei São Paulo desde muito menino. Era ainda  um tempo em que não se via mal algum, menos ainda perigo, de alguém com treze, quatorze anos sair sozinho aqui de nossa cidade, viajar num trem da Mojiana, fazer baldeação em Campinas, descer na estação da Luz, tomar um bonde e dar com os costados na casa de um parente, no Pari ou na Vila Mariana. Velhos, velhíssimos tempos de nenhum risco em  andar-se sozinho pela cidade toda de São Paulo. Mas o humor dos paulistanos era bem outro, mais de acordo com um céu tantas vezes carrancudo e cinzento. Tive mesmo um tio cujo prazer, um tanto sádico, era dar informações erradas a quem as pedisse. Quanto mais ele desviasse as pessoas do destino correto, mais feliz ele ficava.

            Aventurar-se a conhecer turisticamente a própria terra natal? Quem em São Paulo faz isso? Acho que ninguém. Tenho uns parentes que nasceram, viveram e procriaram pelos lados da  Paulista, da Dr. Arnaldo. Até há alguns anos, filhos e netos deles, já maiores de idade, nunca tinham ido, acompanhados ou sozinhos,  ao Centro Velho de São Paulo – Praça da Sé e imediações. Primeiro, fazerem o quê, lá? As grandes lojas e os cinemas suntuosos saíram dali e foram refugiar-se nos shoppings, tidos como mais confortáveis. Segundo, o medo de trombadinhas, assaltantes...

            Que os paulistas não vejam a hora do final de semana para caírem nas  estradas rumo ao litoral – é plenamente justificável, assim como  cariocas e fluminenses terem grande dificuldade de adaptação em cidades sem praia.. Deve ser mesmo sufocante a freqüentadores  de Ipanema ou Icaraí (praia urbana de Niterói, que dizem ter a melhor vista do Rio) se verem privados por longo tempo do mais completo lazer que se possa imaginar: o mar em sua eterna agitação, ali próximo, à disposição de todos. O principal nem será desfrutar o contato direto com as ondas. Sim, porque é algo inconcebível para nós, interioranos, que haja milhares de pessoas da orla marítima que não entrem no mar. Importante, mesmo, para elas  é ir à praia, deitar-se à sombra de uma barraca e ficar lá, horas e horas, bebericando, apreciando, bugiando. Só os visitantes e os suburbanos sentem irresistível necessidade de se molharem na água salgada, assim que se pilham na areia. Ficam com a exata aparência de bifes à milanesa.

            Estas rememorações algo desordenadas vieram a propósito do notável tratamento de valorização paisagística que a novela Páginas da Vida vem dando ao Rio de Janeiro. Cenas de encantar quem não conhece a cidade e de provocar nítidas lembranças em quem  a  conheceu em melhores tempos, sem  tráfego/tráfico intenso, sem bandidagem por toda a parte. É o Rio visto com as lentes amorosas dos câmeras da Globo; é o que de melhor o mundo tem para refrigério da alma, apesar de todo aquele calorão. Pena que a triste realidade de seu quotidiano violento acabe espantando visitantes que gostariam de andar, sem medo de butalidades e mortes, em seus inumeráveis recantos da mais pura beleza.

            Já faz muito  tempo, minha mulher e eu, hospedados num hotel do centro, proximidades da Cinelândia, saímos à noite, despreocupados e a pé. Andamos pela Avenida Rio Branco, pela Praça Paris, fomos até a catedral na Rua Chile e à Sala Cecília Meireles. Regressamos sãos e salvos do passeio, horas depois. O recepcionista do hotel, dando sinais de alívio ao nos ver de volta,  indagou de nós, entre cortês e espantado:

            -- Tudo bem no passeio?

            -- Tudo bem...

            -- É, vocês tiveram sorte. Quem conhece um pouco do Rio não se atreve a fazer o que vocês fizeram: andar sozinhos por estes lados e a estas horas...

            Enquanto o Rio mostrado por mil ângulos maravilhosos na televisão esconde a insegurança de seus logradouros a qualquer hora do dia e da noite, os noticiários jornalísticos dão conta de toda a sorte de violência praticada contra turistas incautos vindos do mundo todo. Não sei o que pesará mais no espírito do viajante – a beleza incomparável da cidade  ou o próprio instinto de sobrevivência. Dessa opção dependerá até o futuro do Rio de Janeiro, porque o turismo é a sua grande geradora de empregos e oportunidades.

 

26/08/2006
(emelauria@uol.com.br)

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