A força do exemplo


O Campinho do Vasco e a Cidade
- Márcio Lauria -

O aeroporto saiu do bairro central já  faz alguns anos, mas o nome continua o mesmo: a pista do aeroporto, lugar bom de se caminhar, porque plano, bem protegido dos olhares mais curiosos. Embora nem sempre merecedor dos cuidados que lhe caberiam. Agora melhoraram a entrada do local, mas não há um sanitário, não há um bebedouro, não há como se fazer um aquecimento prévio. Não há uma simples barra para alongamento e flexões.

Sua clientela de caminhantes é quase toda de gente ao menos madura, para não dizer velha e velhíssima. Mas os fregueses do campo de futebol são muito crianças, alguns adolescentes apenas.

Caminha-se sozinho, ou aos pares, ou em pequenos grupos. Há os que não suportam a solidão na caminhada, como há os que unem o agradável ao útil: quando um sujeito chega portando um walkman ou algo mais moderno ainda, com os fones já grudados aos ouvidos, é como se desse um geral e irrevogável recado: “Hoje não estou para ninguém”.

De lá se avista uma paisagem rural ou o que vem restando dela. Nos últimos anos, suaves colinas com pastos verdejantes de repente viraram loteamentos. Canaviais viçosos de um dia para outro foram rasgados  em projetos de ruas. O bairro Vila Verde, para lá do rio Fartura, é hoje como que uma pequena cidade, com tantas casas habitadas e outras em construção.O asfalto ainda novo convive com árvores solitárias – isso por pouco tempo, porque os espaços vazios estão minguando e então só se respeita árvore se for conveniente.

A pista de atletismo onde se caminha, circunda o vasto campo de futebol, um local de muitos convívios sem quase conflitos de uso. Já vi a realização de três jogos concomitantes em calorosas manhãs de férias. Demarcar as áreas de cada disputa  não é problema, como não o é determinar o local das metas. Sempre se improvisam traves, ou se convenciona o gol com ripas, montinhos de roupas, sapatos, tênis. O que importa é jogar com bolas próprias ou impróprias, com uniformes vistosos ou na mais democrática das distinções clubísticas -- o time dos com camisa e o time dos sem camisa...

Como falam os meninos enquanto jogam! A maioria só grita, esgoela, pescoços grossos e vermelhos de tanto esforço. Como praguejam os meninos enquanto jogam! Entre uma e outra chulice, as mães são gravemente ofendidas. Mas, passado o calor da peleja, sabe-se: os xingamentos, por mais cabeludos que sejam, perderam o seu valor semântico, funcionam apenas como frases de estímulo, de censura. Ninguém quer ofender ninguém e tudo se esquece ao fim dos jogos.

Se eu ainda  me importasse com monografias acadêmicas, não hesitaria em pôr-me a campo (figurada e concretamente) para gravar e analisar a riqueza da linguagem dos pequenos futebolistas que labutam por lá.

Muitos deles não estão apenas naquele gramado, rapado e seco em certas ocasiões; em outras, com grama exuberante. Ora tratado com capricho, ora desleixado ao extremo: transportam-se pela força da fantasia  ao Maracanã, ao Morumbi, estádios desse porte. Imaginária câmera de televisão focaliza-os segundo a segundo, de forma que é preciso sempre aplicar-se ao jogo, com técnica, firulas, velocidade, força física. Uma vez ou outra, algum deles constrói mesmo uma invejável jogada ou marca um gol que se poderia chamar “de placa”. Quase sempre, porém, o futebolzinho deles é o feijão-com-arroz de quem quer se livrar da bola o mais rápido possível. Se na Seleção está sendo assim, como se exigir mais daquele pobres e desassistidos meninos?

Mas o que mais me chama a atenção são os especialistas da narração esportiva., por vezes descrevendo suas próprias jogadas. Valem-se do jargão e dos bordões que aprendem no rádio e na TV. Descrevem com emoção lances vividos ou inventados:

- “Lá vai Robertinho de posse da pelota. Está pela direita, a pequena distância da área adversária. Dois o vigiam de perto. Robertinho percebe  o goleiro rubro-negro um tanto adiantado. Parece que vai arriscar dali mesmo. Pelas barbas do profeta! É gol! É gol do Robertinho! Por cobertura! Uma pintura de gol! O que é que só você viu, Gabriel?”

Cada lance, real ou não, tem descrição precisa. Ritmo próprio, vocabulário específico, construções artificiosas de frases, concordância impecável e, claro, as tiradas  de efeito criadas pelo locutor preferido.  Esses e erres redondinhos, pronúncia caprichadíssima, longe do dialeto caipira que usam no dia-a-dia. Ênfase verdadeira na garganta, enfim, uma aula prática de observação, interpretação, imaginação, participação.

Já faz bem tempo, levei um papo demorado com um desses narradores-peladeiros. Ele responde com naturalidade às minhas perguntas, com a pronúncia descuidada de seu grupo social, nada lembrando o vibrante e culto locutor de minutos atrás.

- Lá em casa nóis samo em seis irmão. Os dois mais véio trabaia. Eu vô na escola quando dá, porque nóis veve caçando serviço de diarista nessas fazenda da redondeza.

- Você fala bonito quando narra um jogo, hem?

- É memo, concorda sorrindo.

- Você sabe que fala diferente quando irradia futebol e quando fala com as outras pessoas. Por que isso?

- Nóis aprende de cor o que os home fala no rádio, na televisão.. Despois é só apricá o jeito deles no nosso joguinho..

- E por que não falar caprichado também fora do jogo?

Ele dá um sorrisinho, como antecipando que a resposta haveria de ser muito óbvia:

- Aí num dá. Quando arguém fala certinho, os outro caçoa, diz que  tamo gastando, pergunta se é sábado. Nóis tem de falá como todo mundo fala perto da gente.

O franzino narrador se afasta de mim sem imaginar como dissertara tão corretamente sobre a força da coerção social na tensão da fala, sobre competência e desempenho lingüístico, sobre metalinguagem.

Imagino a pobreza da expressão escrita desses speakers de arrabalde. Seu universo cultural não comporta livros, jornais, revistas: forma-se apenas pela TV, tão alheada a qualquer projeto de educação realista, adaptável às duras contingências do cotidiano nacional.

Com a “irradiação” de eventos esportivos que eles realizam com inteligência e criatividade, fica comprovada a forma niveladora dos meios orais de comunicação de massa, que com a  passagem dos anos acabará eliminando muitos dos falares locais e regionais, ainda hoje tão facilmente encontráveis por todo o Brasil.

Quem sabe daqui a uns anos, de tanto ouvirem mais pessoas falando com certa correção e propriedade,  os futuros  jogadores-narradores de arrabalde também aproveitarão melhor a sua grande capacidade de comunicar-se, sem ter vergonha de bem organizar suas frases, numa norma lingüística que os eleve socialmente?

 

26/04/2008
(emelauria@uol.com.br)

 

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