Memória esparsa

 
Capela de Santa Teresinha

 

·         Pouco mudou em seu aspecto externo a pequena casa em que nasci, no Buracão. Agora ela está sofrendo umas reformas não substanciais, espero.  Pelo bueiro, pude ver um fio de água, pouco mais do que um rego, que, atravessando a rua, ainda passa por baixo dela, vindo das minas que nascem ao pé do morro. Havia muitas hortas por ali, regadas com aquelas águas  recém-brotadas da terra.

·         Lembro-me vagamente de seu aspecto interno, mas gostaria de um dia entrar naquela casa e de olhar pela janela da cozinha que deve dar para um quintal de que não guardo a mínima lembrança.

 

·         Se a vida não pregar uma de suas muito possíveis peças, posso vislumbrar meus endereços extremos: Rua José Teodoro, 367 e Rua 7, n° 16.

 

·         Som mais antigo? Não garanto se mais antigo, porém com certeza incomum: o ronronar do motor  de raríssimo automóvel por aquelas bandas: o carro de praça de Carmo Santurbano, que morava  ali na Rua do Paraíso e vinha almoçar à hora certa.

 

·         A capela de Santa Teresinha é a mesma de hoje. Diferença: não havia casa à sua frente, que dava para uma pequena praça. Em forma de V, saíam dali duas estradinhas: a da direita, hoje rua, ia dar no Brejinho e no caminho precário para São Sebastião da Grama, atravessando uma grande extensão de terras, vagamente chamada de Macaúba. A da esquerda morria em frente ao portão de entrada da bela chácara da família Figueiredo.  Essa estradinha desapareceu, engolida pelas casas ali construídas.  A própria casa-sede sumiu, cortada pelas ruas do novo loteamento. As terras da família de José Ovídio Figueiredo abrangiam todo o antigo campo de aviação e todo o atual Jardim Aeroporto.

 

·         A vasta área onde é hoje o Centro de Saúde pertencia ao Grupo Escolar Dr. Cândido Rodrigues, o grupo de cima.  Lá existia a casa do zelador. No porão do prédio da escola durante muito tempo houve criação de bichos-da-seda, alimentados pelas folhas das amoreiras ali plantadas a  propósito. Conheci como  zelador Caiuby Jordão, grande pistonista. Era chefe de banda, a Lira Rio-Pardense, muito ligada ao Rio Pardo Futebol Clube. Durante anos e anos Caiuby liderou  um afamado conjunto de salão, a  Melodia Orquestra. Quando tocava, suas bochechas se avolumavam e seu rosto ficava vermelho.

 

·         Ainda posso ver o servente, seu Pedro, badalando a sineta que anunciava o fim do recreio dos meninos. Alguns que podiam, compravam sanduíches de mortadela preparados por D. Teresa. A maioria levava lanche de casa, pão com qualquer coisa. Uns permutavam pedaços.  Outros pediam um naco. Havia os declaradamente pobres, assistidos pela Caixa Escolar, uma espécie de precursora das associações de pais e mestres.

 

·          Depois, era subir as escadas em silêncio e em quarta posição, ou seja, com os braços às costas, em ângulo reto. Era para  evitar brincadeiras de mão – porque uma professora nos alertava sempre: brincadeira de mão, brincadeira de vilão. Nós não entendíamos o sentido profundo da frase, mesmo porque ninguém ainda sabia o que vinha a ser vilão. Até hoje desconheço quais eram as outras três posições para os braços, mas o fato é que entrávamos na classe em silêncio e em quarta posição.

 

·         Se me perguntarem, sei na ponta da língua os nomes de minhas professoras no grupo escolar: Cândida, Zita, Isaura, Laudelina. Cada uma delas com seu estilo e suas preocupações. Mas antes, nas duas ou três primeiras semanas de minha vida de aluno, houve outra que me deixou forte imagem. Chamava-se Maria Leal e nunca mais a vi ou tive qualquer notícia dela. Deve ter-se removido para outra cidade, quem sabe se mudado para outro país.  Eu a achava bonita, muito bonita. Usava uns vestidos de cores claras. Devia ser solteira, porque me lembro dela saindo sozinha do Hotel Brasil. Desapareceu sem deixar  vestígios. Como terá sido a vida de Maria Leal, minha primeiríssima professora?  Tenho aqui comigo que ela foi o objeto de minha incursão inaugural no secreto reino do platonismo.

 

·         Da curta passagem familiar pelo sobradão da Treze de Maio onde hoje se ergue um edifício de apartamentos, meu olfato guardou o cheiro de folhas maceradas de gerânio e de um velho, velhíssimo pé de louro.

 

·         A memória visual reteve os círculos contínuos  da mureta do terraço que formavam o que em geometria se chamam  intersecções, e as paredes com figuras humanas de pinturas desbotadas pelo tempo. Próximas do teto de madeira bem castigado, faixas decorativas com flores esmaecidas.

 

·          Ah, um luxo  a inesperada porta envidraçada do quarto principal abrindo-se para  minúscula sacada com balaustrada de ferro, de onde se apreciava a rua, ainda de terra, lá embaixo.

 

·          Logo à frente, a Casa Nascimento e o Restaurante Zenaro; mais à direita a alfaiataria de Antônio Simonetti  e o Hotel Brasil, então o maior prédio da cidade; mais à esquerda, a alfaiataria de Lourenço Landini, a Farmácia Nossa Senhora Aparecida  e a loja de José Meríngolo. Nos extremos da rua, fechando-a definitivamente: o prédio de uma escola em construção e a Santa Casa.

 

·         A escola em construção veio a ser o grupo de baixo, que só depois ganhou o nome completo de seu patrono, Tarquínio Cobra Olyntho. Enquanto se aguardava pelo novo prédio (suas obras ficaram paralisadas um bom tempo), seus alunos tinham aula num casarão infelizmente demolido, pertencente à família do Sr. José Soares, seu Juca Soares, um benemérito. Situava-se onde hoje está o Ranchão. Tinha já servido para a instalação da primeira escola secundária da cidade, precursora do Gymnasio do Estado, logo depois  denominado  Euclides da Cunha.

 

·         De espantar o tamanho da casa que me pai comprou na Várzea. De espantar o tamanho do quintal, com sua terra estéril, porque  poluída com soda de limpar garrafas do guaraná e da gasosa antes ali fabricados; um abacateiro decrépito era a única árvore  num vasto terreno que tinha até canavial. Meu pai não quis ou não pôde comprar toda a sua extensão. Descartou a parte onde hoje  funciona uma lavanderia. Essa área não era murada, mas delimitada com a rua por uma cerquinha de arame farpado e bambu, onde sobreviviam uns espinhentos pés de figo-da-índia, alegria da meninada que jogava bola num campinho em completo desnível. Os gols eram amontoados de roupas e de sapatos daqueles felizes craques das bolas de meia,  feitas em casa por mães ou irmãs prestimosas.

 

·         Entre outras atrações do quintal,  destaque para um caminhão sem pneus e sem carroceria, mas com rodas, direção, banco, motor imprestável. Uma festa. Dia tristíssimo aquele em que  veio outro caminhão, bem maior, e levou não se sabe para onde o nosso incomum brinquedo.

 

·         Daqui de onde escrevo, posso ver o portão da minha garagem. Quando nos mudamos para cá, o que havia ali era uma porteira. Sim, uma porteira pesada, de peroba, por onde podiam passar veículos e animais. Era a entrada de serviço da casa. Isso faz tempo.

 

26/01/2013
emelauria@uol.com.br

 

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