LONGÍNQUOS
E
RECENTES
NATAIS
Minha
mãe,
que
eu
me lembre,
nunca montou
um
presépio.
Não
por
falta de
fé
ou de
respeito
pela
data;
antes
por
ausência de
hábito
familiar.
Falta de
tempo,
talvez,
tanta
era a
trabalheira
com
minha irmã Neusa,
nascida
perfeita e
linda,
mas
doente
desde
um
ano e
pouco,
até
morrer na
adolescência.
Natal, na
casa dos
pais de
minha
mãe,
tinha
generoso
consumo de
vinho,
frutas
secas européias,
confecção de recheadíssimas
roscas e de
um
tipo de
nhoque
assado e adoçado
com
mel.
Não sei
que
nome teria
em
português essa
massa de
inesquecível
sabor. Sei
que
lá
todos a chamavam de pinholate,
talvez uma
palavra italiana
que
nunca vi
escrita. Quem
preparava as
coisas
por
lá,
desde
que morrera
prematuramente
minha avó
Albina, sendo
minha
mãe
ainda
solteira,
era
minha
tia Luísa Della
Torre Bertocco, de
saudosa
memória.
Minhas
mais remotas
lembranças de
presépios
me remetem
para a
casa de
meus avós
paternos, Catarina e Antônio, no
breve
tempo
em
que moraram na
Rua José Teodoro,
próximo da
casa de
meu
avô
materno, César Bertocco,
ali no Buracão.
Quem montava os
presépios na
casa dos
meus avós? Provavelmente
minhas tias Albertina e Antonieta, que
eram filhas de Maria e guardariam
profunda religiosidade
até morrerem solteironas,
décadas
depois,
em
São Paulo. Posso
ainda vê-las
com fechadíssimos
vestidos
brancos e
larga
fita
azul transpassando o
peito, indo à
missa
ou a outras
solenidades na
igreja de
Santa
Rita de Cássia, no Pari. Uma delas, a
caçula Antonieta,
além do
mais
era
solista no
coro
paroquial e cantou
com boa e
potente
voz as
Ave-Marias de Schumman e de Gounod
em
centenas de
ocasiões.
Veio
até
cantar
aqui
em
São José
em
nosso
casamento. Disse-me
ela
que seria
seu
presente
para
mim e
para
Marina.
Isso faz
tempo à
beça.
O
presépio da
casa de
meus avós
paternos
tinha
cores e
odores
muito
próprios:
um
semicírculo de bambuzinho limitava a
gruta
feita
com
papel amassado
que lembrava
pedras toscas; enfeites
de cedrinho (é dele o
odor
mais entranhado na
lembrança);
caminhos de
serragem e
areia;
verdes
campinas e um
tenro
arrozal nascido
em brejinho de
barro
sempre umedecido;
lagos de
cacos de
espelho;
um
burrinho de
celulóide
marrom,
vaquinhas, carneirinhos,
patinhos. A
manjedoura
me parecia
desproporcional
em
tamanho (grande
demais),
ou as
figuras humanas
pequenas
demais. Dominando
tudo, no
alto do
semicírculo, uma estrela-guia de
papelão
pintado
com
purpurina, dois
anjos dependurados
por
barbante e segurando
um
tipo de
faixa
imóvel
onde
mais
tarde soube
que estava
escrito
em
latim “Glória a
Deus nas
alturas”. Supremas
licenças
poéticas, a
instalação do
monjolo movido
por
um fiozinho de
água
corrente trazida
nunca soube de
onde, capelinhas, umas casinhas modernas
dispostas
aqui e
ali,
para a
composição
mais realista da
paisagem. O
burrinho de
celulóide fazia o
papel
quase
sempre atribuído à
vaquinha de
presépio: o
pescoço movimentava-se à
mínima
brisa e dava
sempre
seu assentimento,
eu
nunca soube a
quê.
Meus avós
paternos e as filhas solteiras se mudaram
para
São Paulo e
nós ficamos
sem
presépios
familiares,
por
muito
tempo.
Grandioso,
mesmo,
era o
presépio
montado na
Matriz (só havia
uma,
hoje a de
São José),
com caprichadas
imagens humanas, os
três
Magos avançando
um pouquinho
por
dia
rumo ao
rosado
Menino Jesus,
deitado,
mas de
braços
abertos,
sob os
olhares
vigilantes de José e Maria,
em
atitudes de encantada
ternura. Gaspar,
Belchior e
Baltasar
só terminariam a
longa
viagem de
adoração ao
Menino no
dia 6 de
janeiro, portando
suas
cargas de
ouro,
incenso e
mirra.
A 25 de
dezembro de 1939,
nossa turminha, conduzida
pela professora de
catecismo, Yvette Rondinelli, de
quem
nunca
mais tive
notícias, foi
ver o
Menino recém-posto no
presépio. Isso
depois de
termos
feito a
primeira
comunhão
com o velhíssimo
Monsenhor, de
que
quase
ninguém sabia o
nome,
era o
único
Monsenhor
por estas
bandas.
Minha
mãe
nunca o chamou
pelo
pomposo
título:
para
ela e tantas outras
pessoas freqüentadoras da
Matriz,
ele
era
um
aparentemente
imorredouro e inamovível
Padre Arnold,
símbolo
visível da
própria
Igreja, de
repente
mandado
embora
por
um
anônimo e
execrável
bispo de
Ribeirão
Preto,
para
ceder
seu
lugar,
que parecia
vitalício, a
um padrezinho
pequeno,
elétrico,
fumante
inveterado, Adauto Vitali,
que
muitos
anos
depois morreria no
posto,
também
feito
Monsenhor e
elevado às
honras de
Prelado
Doméstico.
Que
volta dei!
Mas
quem imaginaria o
Monsenhor Guilherme Arnold (hoje
nome da
praça da
igreja de
São
Roque) perdendo o
lugar de
pároco,
talvez
pelo
avançado da
idade?
Ele,
seu jeitão
germânico e
sua
luneta
astronômica
com
que perscrutava os
límpidos
céus do
quintal de
sua
casa situada
defronte ao
Hotel
Paulista,
onde
hoje reside a
família
Pena Fernandes...
Quem imaginaria o
pequeno e
elétrico
Padre Adauto tendo a
coragem de
instalar uma
nova
casa
paroquial -- aquela
mesma
ali ao
lado da
Matriz,
raro
exemplo de
edificação
que
tinha
dois
pavimentos e passou a
ter
um
apenas? E ,
tempos
depois, botar
abaixo a belíssima
igreja projetada
por
Ramos de Azevedo?
Hoje haveria
gerais
protestos,
mesmo
quando se soubesse
que
sua
intenção
era a de
fazer
São José do
Rio
Pardo
sede de uma
diocese e
para
isso precisando
ter uma
igreja
digna de
elevação a
catedral.
São João da Boa
Vista,
com
templo
pequeno
mas
influências
pessoais
enormes, ganhou a
luta
pelo
bispado.
Padre Adauto rezava
missas
em
menos de
meia
hora,
porque falava
muito
pouco,
quando falava. É dele o
mais
curto
sermão
que ouvi
em
toda a
minha
vida: “Que as
palavras do
Santo
Evangelho produzam
frutos
em
vossos
corações”. Precisaria
mais?
Ele,
quem sabe
por
excessiva
modéstia, achava
que
não.
Mas quando
pregava, atingia
logo o
cerne das
questões e
tinha
visível boa
vontade
para
com os
pecadores de
modo
geral. Gostava de
papear
com
amigos, de
jogar
buraco no
antigo
chalé da
família de Oliveiros
Pinheiro, também
ingloriamente demolido,
não
sem
antes
servir de
local de
encontro
só de
homens de
bons
costumes, chamado
inocentemente Boa
Vida. Cedeu
lugar à modernosa
sede
social do
Rio
Pardo
Futebol
Clube,
hoje
quase às
moscas,
porque as
reuniões
sociais mudaram
muito,
com o
advento da
televisão.
Padre Adauto gostava de
confraternizar, de
até
freqüentar
ranchos de
pesca. No
entanto,
ninguém
quanto
ele mereceria a
placa
que
em
sua
homenagem se pode
ler à
entrada da
nova
Matriz, inaugurada
depois de
anos e
anos de
campanhas,
quermesses,
lutas de
toda
ordem: “O
zelo de tua
casa
me devorou”... Devorou e frustrou
seu
sonho de
ver
São José do
Rio
Pardo
sede de
bispado.
Ele pôde
sempre
pensar
que a
parte
que
lhe competiu na
dura
tarefa foi realizada, e
muito
bem realizada. Caberiam
perfeitamente
em
sua
definição de
vida as
palavras
que Fernando
Pessoa colocou na
boca de Diogo
Cão
navegador: “... é
minha a
parte
feita: / O por-fazer é
só
com
Deus.”
Na
casa da
família de
Marina
sempre montavam
presépios.
Eu
mesmo os vi muitas
vezes
desde
menino.
Ela trouxe
para
nossa
casa
esse
piedoso
costume.
Ano
após
ano, tenho podido vê-la
desembrulhar
com
extremos de
cuidados os
componentes
tanto do
presépio
quanto da
árvore de
Natal, numa
convivência
pacífica e de
agrado de
nossos
filhos,
responsáveis
por tantas
bolas quebradas,
magos desnarigados,
anjos desasados,
ponteiras despencadas.
Hoje, 14 de
dezembro,
presépio e
árvore estão montados, iluminados
por
ela,
sem
auxílio de
nenhum
filho,
longe
ou
perto de
nós,
mas
definitivamente desobrigados dessas
práticas
tão antiquadas, na
visão de
tanta
gente.
Um
novo e
sintético
presépio faz
agora
sua
estréia
aqui
em
casa. É
pequeno,
mas
luxuoso,
com os
personagens envergando
roupas recamadas,
muito
chiques,
mesmo.
Marina acho
que
nunca o compraria,
mas aceitou de
bom
grado o
presente de familiares.
Esta
quadra do
Natal serve
para
isto
mesmo:
desenterrar
miudezas da
memória,
tentar de tantas
maneiras
reviver o
espírito
bom das
coisas,
recriar
climas,
invocar a
lembrança de
pessoas
que foram ficando
lá
atrás, soterradas pelas
contingências da
vida
toda.
Enquanto escrevo, tenho
em
mente
lembrar
para
mim e
para outras poucas
pessoas
que as conheceram, duas dessas
mulheres,
capazes de
muito
dar e
muito
pouco
esperar:
minhas tias Luísa Della
Torre Bertocco e Albertina d’Elia Lauria.
Elas fazem
parte do
melhor das
minhas recordações de
meninice e
juventude. Ligo-as de
modo
definitivo às boas
reminiscências trazidas necessariamente
pelo
Natal.
25/12//2004
(emelauria@uol.com.br)
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