Dando retorno
Não deixa de ser confortador saber que muitas pessoas lêem este canto de jornal. Algumas às vezes reclamam sem razão: é o caso, mais freqüente do que se esperaria, de quem só me imagina, com foto e tudo, aqui na última página do caderno “Cultura”. É que, de vez em quando, pelo assunto ou tamanho do artigo ou pela possibilidade de ilustrá-lo melhor, lá vou eu para a primeira página do mesmo caderno, sem fotografia, só com o nome. Se formos atrás de insatisfeitos funcionais ou de pessoas com grande dificuldade de concentração mental, então correremos o risco de achar que só escrevemos para nós mesmos – o que não deixa de ter sua ponta de verdade, em tantos casos. Com a popularização da correspondência eletrônica, ficou muito mais acessível ao leitor dizer ao autor o que bem queira. E às vezes dizem coisas bem pesadas... Mas, de modo geral, quem não gosta nem perde tempo em pôr para fora sua desafeição. Não lê, e pronto. A quase-totalidade da correspondência recebida provém de leitor solidário ou de leitor complementador. Solidário é quem escreve para dizer ao escriba que concorda com ele em gênero, número e caso. Complementador é o que acrescenta coisas ao assunto focalizado. Detalha episódio, corrige data, adiciona comentário. Também é comum numa conversa que este ou aquele que jamais escreve ou telefona comente de passagem, no meio de uma frase, que leu o artigo da semana passada... Se for considerar o que tenho escrito nos últimos meses, três assuntos renderam e-mails, telefonemas e recados de viva voz bem acima da média: “Coração materno”, “Crônica de Cachorros” e “Vai-se entender o amor”. Ao contrário do que proclama uma das leis de Murphy, segundo a qual de onde você menos espera é que não sai nada, está difícil estabelecer o perfil de meu leitor e, mais ainda, sondar as suas preferências. O prazer ou a emoção decorrente de um texto está muito ligado a experiências pessoais que batem com o assunto posto em foco. É o que aconteceu com “Coração materno”, tema que procurei tratar com delicadeza e realismo, porque, afinal, as vidas de pessoas avançadas em idade hão de ter forçosamente muitos pontos comuns. A velhice extrema não passa de uma soma de impossibilidades, esquecimentos e temores. -- Aqui em casa vivemos exatamente o que você relatou, resumem várias pessoas. A esse propósito, fico imaginando o desgaste físico e emocional de tantos homens e mulheres que, também já adiantados na idade, precisam tomar conta de outros. É barra das mais pesadas, mesmo quando se tem a máxima boa vontade. Muitas vivem ou viveram um grave dilema: internar ou não o velho inválido em instituições assistenciais. Algumas, mesmo não tendo outra alternativa, culpam-se do “abandono” a que teriam relegado pai ou mãe ou irmã, por absoluta impossibilidade de mantê-los e tratá-los em casa. Não se cogita de abandono, mas da aplicação do princípio jurídico do estado de necessidade: ninguém é obrigado a sacrificar a própria vida por quem quer que seja. Mas muitos sacrificam. A mais recente de minhas crônicas chegou a “provocar lágrimas”, como me escreveu uma senhora de nossas relações desde os tempos de crianças. Não foi essa a minha intenção. Nos dois casos relatados, o que quis ressaltar foi que não há como o amor vencer sem algum sacrifício. As duas histórias são rigorosamente verídicas, enfeitadas aqui e ali com um pouco de imaginação, especialmente para preencher algumas faltas no fio narrativo. Outra coisa: o leitor aprecia muito casos com final feliz, ou quase. Nenhum desses assuntos, porém, provocou mais comentários do que a crônica com cachorros. Alguns, não sei por quê, surpreenderam-se com minha declarada afeição por cães. Outros não deixaram de assinalar certa fatalidade que parece marcar os animais mantidos na família ao longo de muitos anos: ou fogem ou morrem cedo... Pois essa “fatalidade” quase se fez presente também com Vlad, o cão labrador de meu filho, que ficou aqui em casa enquanto crescia mais um pouco. Fugiu e correu o risco de morrer.
Um dia, há menos de um mês, saí a dar umas voltas com ele. Não poucas pessoas comentaram comigo esse fato corriqueiro, fazendo referência ao que tinham aqui lido a respeito. Para acostumá-lo a andar desatrelado, tomei um caminho sem movimento algum que, saindo do ginásio de esportes do Rio Pardo, vai dar a um lugar antigamente conhecido como “mina do Sebastiãozinho”, hoje remodelado e bem-cuidado por meu amigo Dr. Ernani Vasconcellos. Dezenas de pessoas lá vão, diariamente, encher vasilhas com água de ótima qualidade, que provém de nascentes situadas no morro próximo e é trazida a um chafariz com muitas bicas. Chegamos à tal mina, tomamos daquela água tão fresca e nos pusemos de volta, o Vlad sempre caminhando mais ou menos perto de mim. De repente, aparece uma dessas bicicletas motorizadas, cujo condutor não teve como se desviar do cachorro, muito intrigado com aquelas duas rodas rodando. Acabou passando por cima dele e se estatelando no chão, em meio a xingamentos e frases de efeito, como “agosto é mês de cachorro louco!” Pensei antes no condutor do que no cachorro. Perguntei-lhe se estava machucado e ele me mostrou as palmas das mãos, raladas e sangrando um pouco. Nada estava quebrado e ele nem quis mais saber de prosa, indo em direção à mina para encher os seis seis garrafões de vinte litros. Chamei pelo Vlad ali pelas imediações. Nada. Fui para mais longe, até que uns pedreiros que trabalhavam numa casa próxima me disseram ter visto um cachorro preto correndo pelo meio da rua, com jeito de muito assustado. Vim para casa, disposto a procurá-lo de carro até onde desse. Marina e eu batemos aquelas ruas todas do Jardim São Roque, dando informações sobre o fugitivo. Tudo em vão. Pusemos anúncio em duas estações de rádio. João, o dono do cachorro, também gastou um bom tempo perguntando, dando informes. Passou-se a noite, e nada. Estávamos todos aborrecidos aqui em casa, principalmente eu, porque tudo acontecera sob minha guarda. No dia seguinte, muito cedo, um telefonema. Era de alguém que, tendo ouvido o anúncio numa das rádios, pedia detalhes sobre o cachorro. Nada havia dúvida, era o Vlad. Numa hora mais apropriada dei a notícia ao João, que logo saiu para a operação-resgate. Vlad fora muito bem guardado e muito bem tratado por gente que gosta de animais. Contaram que estava faminto quando apareceu na Padaria São Roque e só faltou pedir comida... Marta, a jovem que lidou com ele, confessou que estava torcendo para que o dono não aparecesse. Chegou a levá-lo ao veterinário para ver se não estava ferido, deu-lhe ração, além do pão que ele tanto aprecia. Respirei aliviado com o retorno de Vlad. Mantive-me atento nele, temeroso de que algo mais lhe acontecesse, mas tudo saiu bem. Um ou dois dias depois, levei-o à Padaria São Roque para eles verem como estava em plena forma. Ele reconheceu a mocinha benemérita e logo pulou em cima dela, num estabanamento que muitos não toleram... Dias depois, ele foi transferido, conforme o programado, para a chacrinha do João. No domingo fui lá vê-lo. Cresceu bastante. Fez festas para mim, como faria para outras pessoas. Não o deixei pular em mim nem o levei a passear pelas redondezas. Os últimos arranhões afetuosos que ele me fez nos braços logo depois do reencontro estão quase desaparecendo. Não digo que jamais voltarei a ter um cachorro. Se tiver, será de raça mais acomodada e de pequeno porte. Um basset, talvez, que me parece ter um ar filosofante...
25/08/2007 |