Tantos anos depoisPor boa que seja a memória, há sempre o perigo dos lapsos e imperfeições. Falar de 31 de março de 1964 e todas as suas decorrências torna-se tarefa difícil, especialmente para quem não teve maior participação em acontecimentos, colocando-se apenas como paciente de um dos momentos que marcariam a história de largo período da vida nacional. Como eu, milhões e milhões de brasileiros, que só souberam das coisas por ouvir dizer, por ler, por sofrer os efeitos de tudo aquilo que nos chegava requentado, manipulado, maquiado em versões que satisfizessem aos mandantes de plantão. Não se pode negar que aquela revolução era fato esperado, dada a fragilidade do governo de João Goulart, que descambou para a instalação de uma república sindicalista, para a quebra da hierarquia militar, para o caos econômico-social resultante de uma inflação incontrolável que corroía todos os salários e aumentava o quadro geral de miséria. A minissérie JK tem servido para a recapitulação de uma torrente de eventos que tiveram sua origem na desabalada pressa de se construir Brasília e de se fazer a cerimônia de posse do novo presidente, Jânio Quadros, naquela cidade fantástica, perdida na imensidão do cerrado goiano. Disso, e não propriamente da interiorização da Capital, projeto inserido no texto constitucional de 1891, o primeiro da República, disso é que resultou a parte mais visível e mais recente de um dos grandes males nacionais: a corrupção, numa escalada que até então não havia dado sinais de existência no âmago do Estado – o poder federal . Lembro-me de uma revelação que me fez Lupércio Torres, o prefeito de São José do Rio Pardo, à época. Ele, com boas ligações com um pessoal da Aeronáutica, queria saber do andamento de processo que envolvia pessoas aqui da cidade. Dirigiu-se a quem de direito em Brasília, forneceu os dados de que dispunha, e o oficial que o atendia fez-lhe uma pergunta incompreensível nos dias de hoje, mas muito pertinente naquele momento: -- Trata-se de caso de corrupção ou de subversão? -- De corrupção. O oficial mostrou-lhe então um imenso hangar em que estavam empilhados milhares de dossiês, muitos deles com certeza mais graves do que o eventual caso de corrupção apurável aqui em nossa cidade: -- Não estamos tratando de nenhum caso de corrupção. Por enquanto, só nos interessa debelar a subversão. E os anos seguintes vieram demonstrar que o tratamento errôneo dado a pretensos casos de subversão como que incentivou o alastramento da corrupção administrativa, hoje em níveis não se sabe se controláveis num futuro próximo. Dessa exagerada ênfase a reais ou fantasiosos casos e focos de subversão, decorre a gradativa perda de credibilidade dos governos revolucionários de Castelo Branco, Costa e Silva, Médici e Figueiredo. Com as raras exceções confirmadoras da regra geral, subversão, especialmente na vigência do AI-5, a partir de 1968, teve no Brasil um nome verdadeiro e muito menos grave: alegados crimes de opinião. Foi a crescente grita dos intelectuais, dos jornalistas, dos setores religiosos, dos políticos de oposição que provocou o esfacelamento do apoio nacional aos presidentes revolucionários. Foi a cassação de deputados e senadores que nas casas legislativas usavam do direito de emitir juízos de valor a respeito de tudo o que acontecia no País que levou o descrédito público à revolução de 1964, em suas linhas-mestras portadora de corretas posições quanto ao nacionalismo, ao desenvolvimento harmônico das regiões brasileiras, ao combate à pobreza, à doença, ao analfabetismo. Parlamentares cassados, quando não colocados em prisões de triste memória, políticos de expressão nacional postos à margem da disputa eleitoral ainda que casuística, líderes dos mais variados segmentos sociais banidos do território brasileiro, jornalistas aprisionados ou mortos, professores apeados de suas cátedras, a imprensa submetida a descabelada censura – aí estão alguns dos muitos fatores que levaram ao rápido deperecimento das aspirações defendidas pela revolução de 1964. Razões que levaram à cassação de um Márcio Moreira Alves, de um Hélio Navarro, entre tantos, beiram hoje o ridículo, porque estes jovens parlamentares nada mais fizeram do que expressar em voz alta e na tribuna própria o que não só eles pensavam. Essas violências contra um dos mais importantes direitos humanos – o da expressão do pensamento, têm até hoje funestas conseqüências na vida nacional: desestimularam vocações para o correto trato das coisas públicas, desencorajaram a participação de muitos nas disputas eleitorais e – o pior de tudo – fizeram surgir uma classe de políticos oportunistas, sem nenhuma vinculação programática ou ideológica, responsáveis em todos os níveis pelo triunfo das nulidades, de que já se queixava Rui Barbosa, o mesmo Rui Barbosa da admiração profunda de Hélio Navarro, o mesmo Rui Barbosa que diagnosticou um dos mais graves males nacionais: a vergonha de ser honesto, em face de tudo o que corruptos, venais, aproveitadores vêm conseguindo conquistar neste nosso pobre Brasil de hoje e, com certeza, em todo o futuro visível no horizonte de nossas existências. Lembro-me de dois fatos marcantes que me fizeram assumir em relação à revolução de 1964 atitudes cada vez mais críticas: Ainda era aquele tempo em que se velavam os mortos em suas casas: se muito religiosos, em algum templo; se de alguma expressão comunitária, na Câmara Municipal. Já nem sei de quem o velório. O fato é que num velório de homem público importante, Hélio Navarro e eu mantivemos longo diálogo, que prosseguiu durante o préstito, a pé, até o cemitério. Escutei com atenção e respeito suas ponderações sobre o momento nacional, com o País ainda não entrado no estado pleno de direito. Percebi sua mágoa de ter sido posto à margem da política parlamentar, sua injusta prisão e suas poucas esperanças de vir a recuperar aquela projeção nacional conquistada pelo meio mais legítimo, o voto. Suas previsões daquele dia se confirmaram: suplente de senador, não chegou a exercer o mandato. Candidato a prefeito municipal, não teve a preferência popular. É de se imaginar como poderia ter sido brilhante sua ascendente trajetória política se, por ter emitido, quem sabe de maneira cáustica , seu juízo de valor sobre figurões da época, não tivesse sofrido punição tão iníqua como a perda do status de deputado federal. O outro fato quase havia sido por mim esquecido, mas recentemente reavaliado por testemunha presencial: o natural gesto de atender ao pedido do amigo e colega José Ennio Casalecchi, professor de Sociologia no Instituto de Educação Euclides da Cunha, preso também por “subversão”. No furor punitivo do AI-5, ele temia que a polícia encontrasse livros comprometedores em sua biblioteca doméstica. Atendendo a telefonema seu, entrei despercebidamente em sua casa vigiada e de lá retirei alguns volumes de Karl Marx, de Max Weber, de Celso Furtado e... de Fernando Henrique Cardoso! Casalecchi ficou detido num quartel em Piraçununga, de lá saindo excepcionalmente para acompanhar o sepultamento do pai, em Espírito Santo do Pinhal. Só aceitaria a deferência se tivesse a garantia de poder ir de mãos livres e sem vigilância policial ostensiva. Assim foi. Nós, seus poucos amigos, estávamos lá.
25/03/2006 |