Anotações de eleitor calejado


Estradinha rural
Autor: Fernando Lauria Darcie

 

A primeira eleição de que participei foi estudantil, em 1949, na disputa pela diretoria do Grêmio João Ribeiro, do Colégio Estadual e Escola Normal Euclides da Cunha. Eram dois os candidatos a presidente: Arivelsio Padilha e Paulinho Ferreira. Houve até comício no coreto do jardim,  com todos nós,  companheiros de Paulinho (colega no curso Normal), passando antes pelo Raddi e tomando umas goladas de conhaque, para aclarar a voz  e aguçar a coragem. Foi nesse comício que Ireno Perassi, vice na mesma chapa, deu o toque de entusiasmo e de democracia em sua fala: “Não vim aqui para atacar ninguém, mas o desgraçado do Galo Cego bem que merece levar uma tunda!”

Hoje todos eles estão dormindo, dormindo profundamente.

 

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Estreei como eleitor compulsório em 1950, numa campanha em que disputavam a presidência da República Getúlio Vargas, o Brigadeiro Eduardo Gomes e Cristiano Machado, respectivamente pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), União Democrática Nacional (UDN) e Partido Social-Democrático (PSD).

O candidato do partido  governista (PSD) era Cristiano Machado, um pacato mineiro cujo nome daria origem a novo sentido do velho verbo cristianizar, que deixou de significar “trazer pessoas para o Cristianismo” e passou a sinônimo de “fingir apoiar”. Quer dizer, o PSD lançou-o candidato, mas na verdade morria de amores por Getúlio Vargas, presidente deposto em 1945. O Brigadeiro Eduardo Gomes, da UDN,  concorria pela segunda vez, pois na primeira eleição após o que se chamou redemocratização do Brasil, perdera para o Marechal Eurico Gaspar Dutra, presidente empossado a 31  de janeiro de 1946, cumprindo mandato de cinco anos.

Em 1951,  Getúlio Vargas voltou ao poder pelo voto popular. Não terminou seu mandato, porque o “mar de lama” entrou pela primeira vez  declaradamente na história eleitoral brasileira  e levou esse grande líder populista ao suicídio, a 24 de agosto de 1954. Foi substituído pelo norte-rio-grandense João Café Filho, logo deposto.

A eleição de 1955 conduziu ao Palácio do Catete, então sede do Executivo, no Rio de Janeiro, o mineiro Juscelino Kubitscheck de Oliveira  — um raro presidente civil que cumpriu integralmente seu período de cinco anos, de 31 de janeiro de 1956 a igual data de 1961. Aí foi a vez de assumir, já em Brasília, o carismático, enigmático, opiniático Jânio da Silva Quadros.

A campanha  de Jânio teve lances da mais admirável encenação, ele com sua feição descomposta, voz esganiçada, linguagem arrevesada, caspa nos ombros,  cada olho ressaltando para um lado, cabelos em desalinho, frases de efeito, promessas mirabolantes. Foi uma vitória esmagadora sobre o candidato oficial, o Marechal Lott. Dando sentido prático a seu símbolo eleitoral, a vassoura, Jânio prometeu varrer a corrupção da administração pública, libertar o Brasil da influência norte-americana, voltar suas prioridades para a América Latina, para a África...

 

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Não dá para esquecer como foi estimulante a sensação dos primeiros tempos da administração janista. Eu e milhões de outros brasileiros púnhamos muita fé nele e acompanhávamos com entusiasmo a sua vontade de mexer em tudo, desde os grandes problemas internacionais, a coragem de condecorar o guerrilheiro argentino-cubano Ernesto Che Guevara, até chegar a miudezas como proibir brigas de galos e uso do biquíni, determinar vestimentas uniformizadas para o funcionalismo público, além de governar por bilhetinhos que fizeram as delícias do País todo.

“Forças ocultas” (isso virou até nome de cachaça) o impediram de levar avante o seu plano de fortalecer o Executivo, em detrimento do Legislativo. Numa peça teatral que exigiria muito mais ensaio e muito mais certeza de importantes adesões, além daquela que certamente viria do povão,  Jânio Quadros apresentou de mentirinha sua carta-renúncia à presidência da República sete meses depois de empossado – a 25 de agosto de 1961 —, com a certeza de que ela não seria aceita e que o povo o reconduziria ao palácio da Alvorada, investido então de poderes excepcionais que o eximiriam de submeter-se às tricas e futricas da vida político-parlamentar. No entanto, o presidente do Congresso Nacional, o senador paulista Auro de Moura Andrade, mandou ler em plenário a carta de renúncia e, contrariando a expectativa de que se seguiriam longuíssimos debates, pedidos de reconsideração, etc., etc., aplicou golpe mortal às pretensões de  Jânio, simplesmente declarando vago o cargo de presidente, uma vez que a renúncia, por sua natureza, era ato personalíssimo que não implicava apreciação pelo Legislativo... E assim foi pelo ralo uma esperançosa votação de milhões de cidadãos, quem sabe pela primeira e única vez entusiasmados com a perspectiva de um governo diferente, voltado para as causas dos pequenos, para os interesses verdadeiramente nacionais...

 

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Depois, Jango Goulart e sua inabilidade congênita, o Parlamentarismo, a volta ao Presidencialismo, a ditadura militar, a falsa eleição direta de Tancredo Neves, a inesperada subida de Sarney, Collor e sua derrubada, Itamar Franco e suas idiossincrasias – enfim, um rosário de pequenas e grandes desgraças que tornaram a história recente do Brasil mais parecida com a  das muitas republiquetas latino-americanas do que com as verdadeiras democracias do mundo ocidental.

Aí elegemos Fernando Henrique Cardoso, um nome de peso internacional, uma boa figura em qualquer lugar do mundo, o estabilizador da economia brasileira, ao mesmo tempo o exemplo mais acabado de aplicador de um neoliberalismo de difícil êxito neste nosso país tão desigual, uma Belíndia, como sintetizou Delfim Neto – mistura de Bélgica (símbolo de um mundo evoluído) e Índia (com seu atraso, com sua miséria, com sua sujeira toda)...

 Penso que tudo se poderia perdoar a Fernando Henrique, menos sua picada pela mosca azul do segundo mandato, conquistado à custa de concessões, benesses, afrouxamentos de princípios, negociações obscuras. Talvez ainda falte a perspectiva histórica que nos permita ver o significado completo desse sonho de uma noite de verão de FHC. A possibilidade de reeleição sem que o pretendente se afaste do exercício de seu cargo seria experiência quem sabe praticável em pouquíssimos países dos mais adiantados no mundo. No Brasil, tem sido a porteira aberta para a corrupção mais deslavada e de consequências ainda inimagináveis.

Ninguém, sem o prestígio de Fernando Henrique, se atreveria a propor a impopular tese da reeleição. Se não tivesse insistido nisso, terminado o seu mandato único, ele teria ido para casa cuidar de seus livros e de suas bem-pagas aulas e conferências. Provavelmente seu sucessor teria sido Lula, que nem pensaria em continuísmo pessoal. Quando muito, amaciaria o terreno para um companheiro, sabe-se lá qual, sem escancarar o uso do dinheiro público, sem elevar a corrupção eleitoral a níveis de dificílimo retorno. Fernando Henrique seria, de novo, páreo muito duro, capaz de se opor mais uma vez às pretensões petistas.

Nada disso ocorreu. Se Fernando Henrique ficou oito anos, por que não Lula também? E assim foi. Depois, a forcejada eleição de Dilma, a candidata só de Lula, ela que hoje paga seu pesado tributo por haver aceito um ministério cheio de pessoas visivelmente incapazes  ou então capazes de tudo...

 

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Daqui a uns tempos, o grande dilema: oito para Dilma, ou Lula, com possível boa saúde, tentando seu retorno?

 Quem serão os adversários? Serra e  Alckmin parecem perdedores do cavalo da oportunidade, que passa arreado uma só vez. Ah, o Aecinho Neves, cada vez mais ele mesmo e cada vez menos sobrinho de Tancredo Neves. Ver para crer.

E outros nomes ainda no limbo, quem sabe o governador de Pernambuco, Eduardo Campos,  neto de Miguel Arraes e pretenso filho, quem diria, do Chico Buarque. Ainda bem que falta muito tempo e muita água correrá debaixo das pontes – espero que também debaixo de nossa enferrujada e maltratada ponte de Euclides.

 

25/02/2012
emelauria@uol.com.br)

 

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