Do nepotismo, das bandas, etc.
Não será de todo perdido lembrar que o substantivo nepos, nepotis quer dizer, em latim, apenas sobrinho. Houve mesmo um escritor conhecido por Cornelius Nepos, isso no primeiro século da era cristã, especialista em biografias. Um tio dele devia ter muita fama à sua época, a ponto de ser apenas Cornelius, mas não venceu a luta contra a passagem do tempo. Cornelius Nepos sim. Foi através da forma italiana nepote que se espalhou pelo mundo uma prática que nasceu em Roma: certos papas encheram de favores não só os sobrinhos, mas toda a parentalha, inclusive filhos que não podiam ser reconhecidos como tais. Por extensão (e haja extensão nisso!), em todos os lugares e em todos os tempos, pessoas bem-postas na vida abusam de sua posição em favor de seus familiares e praticam deslavadamente o nepotismo, praga de dificílima erradicação. O Brasil ganhou certidão de nascimento com a carta famosa de Pero Vaz de Caminha que, mesmo sem ser de sua alçada, não perdeu a oportunidade e mandou ao rei D. Manuel circunstanciado relatório a respeito do achamento desta nova terra. Depois de elogiar muita coisa, mas principalmente a graça das jovens índias nuas, muito certas em suas vergonhas, ao final dela, assim como quem nada quer, pede ao rei, a título de presente cobrável por se dar a alguém uma boa notícia (alvíssaras), que mande soltar um genro seu... Em outras palavras: num só texto, o sempre lembrado Caminha foi intrometido, quebrador de galhos e introdutor de arraigadíssimo vezo do nepotismo, cujo patrocinador mais lembrado, antes desses exageros do petismo governamental, foi José Linhares. Como presidente do Supremo Tribunal Federal e estando fechado o Congresso Nacional, coube a este corajoso paraibano, em 1945, ocupar a presidência da República, em substituição a Getúlio Vargas, deposto pelas armas, enquanto não tomasse posse um novo presidente, que seria eleito a 3 de outubro e empossado no final de janeiro. Em apenas alguns meses de governo, Linhares acertou a vida de sua família inteira, sem o menor constrangimento com as críticas que se avolumaram. Sua linha de raciocínio era admirável: “Pouco me importa que esperneiem contra meus atos. A presidência da República é para mim coisa de pouca duração. O parentesco é para sempre. Não posso ficar mal com meus parentes pela vida inteira!” Nunca se tomara atitude mais enérgica e eficaz contra essas odiosas bandalheiras burocráticas do que com a resolução do recém-criado Conselho Nacional de Justiça, que exigiu a demissão de parentes até terceiro grau, nomeados sem concurso por influência de desembargadores e juízes de Direito. Calcula-se que quatro mil pessoas serão postas para fora das folhas de pagamentos. Mas para que a determinação não fosse cumprida, recursos chegaram até ao Supremo Tribunal Federal, que em decisão histórica recente, por nove votos a um, consumou judicialmente o fim do nepotismo nos tribunais do País. O ministro-relator, Carlos Ayres Britto, resumiu a questão na necessidade de se levar a sério a norma constitucional que exige impessoalismo na formação do funcionalismo governamental, não se devendo confundir espaço caseiro com público, assim como não se pode tomar posse do cargo, apenas no cargo... Bom começo de erradicação dessa praga multissecular. Agora é aplicar-se o mesmo rigor antimordomias familiais no Legislativo e no Executivo de todos os níveis, além de se zelar pela lisura dos concursos públicos. Sabemos como é: à menor brecha legal, a arte brasileira de dar um jeito subverte completamente o conceito de moralidade pública e ainda há quem se encha de melindres quando suas injustas benesses são cortadas.
ESSAS BANDAS FAMOSAS Senti-me irremediavelmente velho e marginalizado por não querer participar nem um pouquinho dessa histeria coletiva que foi a luta pela honra e glória de ver e ouvir ao vivo os concertos dos Rolling Stones e do U2. Nem pela transmissão por televisão me interessei. Nada sei deles, não distingo as músicas de um e do outro. Sei que um desses sexagenários superastros tem um filho com uma das mulheres que considero das muito bonitas Dos Beattles sei um pouquinho mais, como a beleza de Imagine, de Yesterday e de Let it be. Vergonhosamente pouco, tendo em vista o conhecimento enciclopédico que algumas pessoas fizeram questão de revelar sobre todos eles. Enquanto isso, quantos bons artistas brasileiros, quantas boas músicas brasileiras só se apresentam fora de horários nobres, desprezadas pelas gravadoras multinacionais, vivendo escondidas em guetos e em subterrâneos culturais? Eta paisinho complicado este nosso, em que até nossas melhores virtudes só são aqui reconhecidas depois de exaltadas e exploradas no mundo todo. É preciso dar mais espaço a gente competente e motivadora como Rolando Boldrin, cujo programa Sr. Brasil, da TV Cultura, foi considerado o melhor de 2005, é sucesso nacional e bem mostra como o povo aprecia o bom, o belo, o simples, o nosso. Basta apresentar isso de modo conveniente.
A DESAFEIÇÃO DO ALDEMIR Recebi e passei para frente belas reproduções de telas do recém-falecido pintor Aldemir Martins, notadamente sua coleção de gatos. Um dos destinatários dessas cópias via internet me conta como foi o diálogo entre ele e a esposa, ledora de necrológios: -- O Aldemir Martins morreu. -- Já foi tarde. -- Por quê? -- Não me lembro mais. Mas sei que eu tinha alguma coisa contra ele.
ACADEMIA DE PETECA Sempre nutri pelo Rio de Janeiro e por seu povo uma admiração até invejosa. É que desfrutei da cidade ainda na plenitude de capital federal. Dessa condição decorria um espírito cosmopolita que atingia não só os mais ricos ou mais cultos, mas dava também a pessoas simples aquele toque de civilização que ainda faltava a São Paulo. No Rio, mesmo os mais humildes podiam ver, ouvir, admirar os dirigentes da vida nacional, os grandes intelectuais, os artistas, os esportistas que faziam toda a diferença com o modo ainda provinciano de viver dos paulistas. E além de tudo, o mar – o maior espetáculo da natureza. Brasília esvaziou muito o Rio, mas não tirou uma graça própria, uma visão superior que seu povo continua a ter de quase tudo. É por isso que li sem surpresa que em Ipanema, o centro de certo e inconfundível modo de viver, a Academia de Peteca estava comemorando um quarto de século de ininterruptas atividades. Em Ipanema, acredita-se que bater peteca é praticar um dos esportes mais completos, pelo baixo impacto de suas jogadas e pelo que exige de concentração e preparo físico. É, o Rio de Janeiro tem suportado tudo, desde o empobrecimento de seus melhores quadros até a artificiosa fusão com o antigo estado do Rio; desde a sucessão de maus governos até a hegemonia da bandidagem que simplesmente vem ocupando o vácuo da ineficiência governamental. E o mais importante: suportado sem deixar a peteca cair.
25/02/2006 |