Natal, apenas
Na superposição de tantos, o arquétipo. Necessariamente na velha casa, infensa a reformas e melhorias, com a dignidade e os vagares que lhe cabem por direito de conquista. Aconchegada a família para a foto-tradição perto da mesa, entre a árvore e o presépio, que o tempo é de conciliar.
Toleradas filmadoras, máquinas digitais, mas a foto que varará os tempos terá de ser com flash , revelada com os vagares possíveis e um belo dia – distantíssimo – pulará de relegada bolsa, apresentando a curiosos do futuro as nossas caras como éramos nos albores do milênio. Intrusos pensamentos: - Até quando, todos nós juntos? - Quem o primeiro chamado às contas, vencido o estágio? (Sim, porque há os que partiram, precoces ou não, cujas lembranças perpassam nossas mentes enquanto sorrimos para a posteridade. Há também os que partiram apenas daqui, perderam o lugar na foto, entediados, é bem possível, dessas maçadas inventadas sabe-se lá por quem, desde quando.)
Nosso Natal tão sem planos – terno/fraterno, redescoberta a esmaecida pedagogia do ágape.
Bom o comer e o beber, pautando as amenidades, os risos, os retornos ao ontem, malgrado os danos nas faces que imaginávamos menos vincadas, menos tomadas de pensamentos nem todos afloráveis à boca. Entendo os olhares que me dirigem: pertinentes respostas à perplexidade com que circunvago a sala falante. O pai virou (há quanto!) amável lembrança. Passagens suas voejam aqui e ali, sem outro valor que não more no intrínseco de cada um. A mãe, dobrada apenas na fragilidade do físico, Muito menos ativa, muito menos reflexiva, com seu olhar baço de adeuses adiados para contragosto dela e cuidado nosso. (1)
Viça a casa velha com a só presença daqueles nem tão pequeninos (tão poucos!), depositários das efusões que, canhestros, entre nós não ousamos trocar. Removidas as camadas por sobre femininos rostos, abstraídos os pelos de cerradas barbas, achável ainda o resíduo das transpostas meninices agora em convívio com a vida e suas durezas.
Na minha boca, um travo breve e esquecível, a consciência de quanto do melhor já passou.
Bom estarmos no Natal, recomposta a família na amplitude dos ramos todos, acrescidos, podados, reverdecidos. Provemo-nos dum sentimento singelo e consolador: temos muito da mesma cepa. Há pedaços esparsos de nós nos caprichos das combinações genéticas, na curva dos narizes e no franzir dos cenhos, na meia-lua das unhas, nas explosões geniosas, no invencível mutismo em face das mágoas.
Sutil instante de tédio ausente: filhos são menos filhos, netos são menos netos, coesos, entanto, na força ancestral do clã. Cai como luva em minha mulher o nome que assumiu Num distante dia de quase meio século. (2) Minha irmã, afanosa no cortar, pressurosa no servir, sei que em verdade, como eu, vai armazenando com os olhos o sempre adiável álbum sem páginas dos anos depois, com a falta de um, de outro, sabe-se lá de quem mais e em que ordem de saída.
Subjaz implícito o evento do Menino e sua radiosa graça, capaz de reflorir a cada ano, alheio às dores da Paixão, ao triunfo sobre a Morte, à glória mesma da Ascensão.
Perpetuidades simples e graves, tão distantes daquela felicidade maciça que, insensatos, vez por outra sonhamos.
(Texto de 2005, modificado diversas vezes) (1) Minha mãe, Luiza Bertocco Lauria, morreu a 29 de maio de 2008. (2) Minha mulher, Marina Parisi Lauria, morreu a 20 de abril de 2009.
24/12/2016 |