Flanando por aí


Gentileza da leitora Rosa Seki de Olinda-PE

                                         

A idade verdadeira

Não adianta você dizer que tem tantos anos. Você precisa se convencer sinceramente disso, ainda que vozes amigas  digam outras coisas, sempre mais favoráveis.

Por exemplo, no quesito caminhar para o bem do corpo e da alma. Você se lembra  de quando ia à  pista do antigo aeroporto e ali, parecendo um burrinho de olaria, dava religiosamente dez voltas (quatro quilômetros) em menos de quarenta minutos? Isso era em outros tempos, em outras idades. Você diminuiu não só o ritmo como também a distância. Escolheu outros locais menos expostos,  inventou paradas para tomar fôlego, passou a dar graças a Deus quando um conhecido puxava  prosa, interrompendo a caminhada.

 

Nesta segunda-feira

Aproveitando a temperatura amena e o sol ainda brando,   resolveu fazer de novo um antigo percurso de rua, saindo da Praça XV de Novembro e enfrentando a  constante e enganosa subidinha da Rua Francisquinho Dias , até a praça do “Euclides da Cunha”, a Oliveiros Pinheiro. Uns mil metros mais ou menos,antes vencidos com galhardia e disposição. Hoje, foi o que se viu: calcanhar dando sinal de vida, pulmão puxando menos ar, coração acelerando fácil. Felizmente, é ainda conhecido na cidade e sempre aparece alguém  para um papinho salvador. Sabe, como sabe! –precisa enxugar ao menos uns dez quilinhos. Ainda bem que na volta, para baixo todo santo ajuda.

 

Barcelona, Messi, etc.

Dividido entre  a triste hipocrisia de precisar torcer pelo arqui-inimigo Santos, lá no Japão representando o alquebrado futebol brasileiro, e admirando as estripulias coreográficas de Messi  e companhia bela,  anda sobre ovos quando o assunto é comentar com  amigos o jogo de ontem. Nele, viu-se o estranho caso de um time parecer os soldados americanos cercados no seu combalido fortim do faroeste e o outro time fazer o papel dos apaches, rodando, apertando cada vez mais o sítio e esperando com todo o método e paciência o momento certo de escalpelar o bisonho defensor, elevado pela mídia  à irreal condição de adversário à altura. O mais visado era um sujeitinho magro, com um imitável topete apache, que viveu um dia inglório.

 

Contas  de cabeça

Entra na loja, faz umas comprinhas, vai pagar em dinheiro. Gasta  R$146,50 e dá à moça recebedora três cédulas de cinquenta. Ela se embasbaca toda, conta e reconta as três notas, usa a calculadora tanto para somar a quantia dada quanto para saber quanto deveria voltar de troco. Quando ele lhe diz  com alguma impaciência que está esperando os R$3,50 de troco, ela o olha com estranheza. “Como é que você sabe?”

É, o negócio é comprar tudo no cartão, porque já vão muito longe os tempos em que no terceiro ano primário se queria saber quanto teria recebido de troco o sujeito que comprara duas dúzias de copos a dois mil-réis a unidade, uma grosa de grampos a três mil-réis a dúzia, seis quilos de carne a cem mil-réis a arroba. Tudo para ser pago com uma nota de duzentos...

(Troco de 56 mil-réis. Pode conferir com a calculadora, se você souber o que é grosa e arroba.)

 

Procura-se o Neno

Ao  passar  ali pela Praça dos Três Poderes, defronte à Câmara Municipal, vem-lhe à memória a figura mirradinha do Neno, que em criança também  morava no Buracão. Sempre se encontravam naquele mesmo lugar e trocavam duas palavrinhas, apesar de tantas diferenças na vida dos dois.

Pergunta  sobre o Neno a dois senhores que papeiam sentados na mureta.

- O Neno morreu...

- Morreu? Faz tempo?

- Uns seis meses.

- Não diga! Morreu de quê?

- Começou com uma bruta dor de dente. Foi ao dentista, que o mandou ao médico. Era câncer na garganta. Morreu em poucos dias.

 

Nome de criança

Na Praça Barão do Rio Branco, em frente à banca de livros espíritas,  vê uma quase menina, de feições muito agradáveis, carregando  sua filha de alguns meses, bela de chamar a atenção. Encanta-se com aquelas duas, que podiam ser suas neta e bisneta, e se enche de coragem:

- Linda criança esta sua...

- Obrigada.

Pergunta o nome do nenezinho e tem por  resposta algo que lhe soa como  Ana Valéria.

- Ana Valéria... bonito nome.

- Não Ana Valéria, Annválery, numa palavra só, com dois enes, ípsilon e acento! – corrige com muita convicção a jovem  e erudita mãe.

 

A concordância ideológica

Encontra-se na praça  XV com um frequentador habitual, diretor aposentado, que mata as palavras cruzadas do Estadão.

Aí o diretor  lhe pergunta de supetão:

- Você sabe o que é silepse?

- Como? (Pensa que é algo relacionado com o problema das cruzadas, mas não é.)

- Silepse. Você me explicou há uns sessenta anos  que silepse é a concordância ideológica, aquela que se faz não com um termo expresso, mas com outro subentendido...

- É mesmo. Como é que você se lembra disso?

- Não sei. Ficou guardado definitivamente na memória...

Aí se tornou indispensável falar um pouquinho sobre silepse, que pode ser de gênero, de número   e de pessoa... Saíram até exemplos: “Os brasileiros somos imprevidentes” (silepse de pessoa), etc.,etc.

 

Preto como a asa da graúna

Aí vai ao barbeiro acertar as laterais da careca. Quase deitado na cadeira, sob o domínio do fígaro,  está um sujeito magro, de feições envelhecidas e cabelos pretos que faz a barba. Reconhece logo o colega de grupo escolar, isso faz tempo à beça.

Pergunta-lhe como explica aquele pretume todo da cabeleira bem penteada.

- Não faço nada. Passo apenas uma brilhantina, para assentar.

Ficou muito admirado com aquela prova de mocidade, apesar dos oitenta e um do colega.

Mas na hora de se levantar da cadeira, que sacrifício!

- Os joelhos ... Esses joelhos me matam. Não posso andar um quarteirão que a dor aumenta.

Logo chega uma pessoa, avisada por telefone, deve ser neto do velho de cabelos pretos. Ela ajuda cuidadosamente o senhor  a se acomodar com grande dificuldade no carro que o levará para casa.

(É, não há dúvida. As insídias da velhice se manifestam de mil maneiras.)

               

MINICONTO  DE  NATAL
Autor: Everton de Paula

Nesta mesma data, este texto está sendo publicado  no suplemento “Nossas Letras”, do jornal  O Comércio da Franca. Seu autor, meu prezado amigo,  por muito tempo frequentou  nossa cidade, em especial nas Semanas Euclidianas, onde ministrou aulas nos Ciclos de Estudos. Espera-se que ele cumpra  este ano a vaga promessa de voltar.

 

“É esta a hora, única no ano inteiro, só vem na noite de Natal.

O abençoado ato se mostra na sala do asilo de velhos.

Todos dormem.

Recostei-me no sofá.

Sinto as mãos trêmulas e frias, mas cheias de amor maternal

e nenhum filho para acariciar.

Meia-noite.

Apanho o Menino Jesus do presépio, deito-o em meu colo...

E o embalo docemente, como fazia com meus filhos,

hoje distantes, ausentes.

A sala encheu-se de vida, de vida renovada,

embora pálida e fria como a luz infinita das estrelas.

Só eu, mãe de novo,

e o filho de Deus, tirado da manjedoura para o calor do meu colo.

Nós dois, extensão do universo,

naquele que foi meu último e encantado Natal:

o Menino me olhava... E sorria!”

 

24/12/2011
emelauria@uol.com.br)

 

Voltar