Sinais de alerta

 
"Um original ângulo urbano"

 

Era minha intenção dobrar à direita numa rua central de bastante movimento. Dei o sinal de seta e não completei logo a manobra porque um senhor entrou na faixa de segurança e eu, como manda a lei, dei-lhe total prioridade. Bem que ele fez um gesto de quem se considerasse errado, ameaçando mesmo voltar à calçada. Fiz-lhe aceno com a mão, que atravessasse a rua sem atropelos. Meio incrédulo com tanta gentileza, apressou o andar e me agradeceu.

Estranha mesmo foi a atitude do motorista do carro de trás. Sem estardalhaço, mas visivelmente aborrecido, buzinou-me duas vezes, como se me dissesse: “Vamos logo! Eu também vou entrar à direita. Não atrapalhe quem tem pressa...”

Fica a impressão de que quase ninguém leva muito a sério o Código de Trânsito Brasileiro. Pior: de posse da carteira de motorista, o sujeito se investe de prerrogativas que a lei jamais abrigou. No embate pessoa/veículo, toda a atenção deve ser dada à pessoa, independentemente de ela ser moça ou velha, homem ou mulher. Afinal, pelos cálculos mais conservadores, o ser humano tem ao menos cinco mil anos de precedência sobre qualquer veículo, mormente o automóvel.

Foi Roberto DaMatta, brilhante antropólogo, quem cunhou, ou ao menos pôs em circulação nacional, a frase segundo a qual o trânsito é o melhor, isto é, o pior retrato do brasileiro. O Código abriga um conjunto de preceitos muito claros e de validade universal. Infringir qualquer um deles, em especial com o desrespeito à incolumidade do pedestre, é externar não só o desprezo pela norma legal, como ainda confiar  na incapacidade do Estado em cobrá-la convenientemente, por falta de fiscalização.

O Brasil é dos poucos países do mundo em que o pedestre para e espera o carro passar. É um absurdo reflexo condicionado de submissão ao poder econômico, ao poder político, ao eventual prestígio social de quem está dentro do veículo. A regra universal, levada muito a sério nos países ditos civilizados, só para exemplificar,  é todos os carros pararem assim que as rodas de um carrinho de bebê ou o pé de uma pessoa toquem o asfalto, em faixas de segurança. Ninguém  deveria se atrever a importunar o passante, que tem como acionar a justiça e punir de modo significativo qualquer motorista que ponha minimamente em risco a integridade física, psicológica e moral da pessoa de qualquer idade e de qualquer condição social. Sim, também psicológica e também moral, porque pouca coisa haverá de mais ofensiva ou vexatória do que um pedestre se pôr a correr numa faixa de segurança, por medo de ser atropelado, quando menos ainda ameaçado pela buzina, pelos gestos de impaciência e até por algum palavrão do imprudente condutor.

Esta ruim prática do motorista brasileiro de se achar senhor da via pública e de dar a mínima atenção ao pedestre cria, além de tudo, um tipo de encorajamento  a  outros avanços de sinais.

Quem tem sido permanentes vítimas desses tais avanços? Na verdade, seria mais fácil tentar arrolar quem não tem sido: as famílias, por mil razões, não vêm conseguindo deter o avanço dos sinais dos próprios filhos, cada vez mais sem limites comportamentais. Tomar conhecimento dos problemas enfrentados pelos órgãos encarregados de oferecer proteção aos menores – é ficar a par de como a instituição família não vem cumprindo minimamente suas obrigações e se vê tentada, em certas camadas menos esclarecidas,  a transferir para outros a condução dos problemas que até pela Constituição jamais deveriam sair do próprio âmbito familiar. É da tradição constitucional brasileira dar-se à família a prerrogativa de como educar as crianças. Só por delegação de poderes é que o Estado se incumbe disso. O que se vê, porém, é a radical ideia de pertencer ao Estado o estabelecimento das diretrizes educacionais, sem a mínima consulta a qualquer escalão familiar.

As consequências dessa falta de controle, já a curto e médio prazo, não se fazem esperar: desagregação familiar e social, predomínio de atitudes mais próprias de drogados, alcoolizados, viciados. Não bastasse isso, os modelos disponíveis para os adolescentes e jovens em geral são apenas terríveis: a televisão não tem o mínimo traço educativo, os shows e espetáculos públicos andam de uma pobreza maliciosa de fazer dó. A par disso, os maus exemplos dados pelos políticos, a geral permissividade presente nos mais diversos setores da atividade pública vêm tornando até ridículos os esforços de grupos organizados, especialmente os de ação social e escolar, na contraposição que ainda exercem em face da geral dissolução dos costumes tradicionalmente aceitos e pregados.

É sabido que através dos milênios as gerações mais velhas sempre formularam severas queixas em relação às mais novas. Há documentação, com pelo menos quatro mil anos de idade, de reclamações muito fundadas em torno da má-criação  dos moços. Mas eram casos isolados, queixas de puristas excessivos, de educadores rigorosos, de pensadores tradicionalistas. Hoje, não. Os sinais da desagregação social vêm-se tornando tão claros, que se transformaram em problemas de sobrevivência nacional, quando não continentais e mundiais. E, por todos os ângulos que se analisem os sintomas, as causas e as decorrências da dissolução do mundo num futuro próximo, fica muito difícil vislumbrar-se algum traço de esperança, num horizonte visível.

O mundo encontra-se, isto sim, às portas de uma catástrofe anunciada,  conformado com a permissividade, com o confortismo, com o consumismo devorador de energias, de sonhos e de realizações.

Os sinais foram, mesmo, desobedecidos, sem nenhuma metáfora.

 

24/09/2016
emelauria@uol.com.br

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