Uma enorme fotografia

 
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Fotografias são postas de propósito ou por descuido dentro de livros e lá ficam quietas pelos séculos dos séculos. Se uma delas é muito grande, tudo se complica. Foi o que aconteceu com aquele rolo de 66 por 44 centímetros de que ninguém mais dava notícia. Desde sei lá quando, exilado bem para cima e bem para trás na biblioteca, até que uma boa faxina, dessas que duram dias e mexem com tudo, o coloca provisoriamente na caixa dos objetos com destinos incertos.

- O que faço com esse rolo? – indaga a faxineira em fim de expediente.

Não há resposta adequada sem o exame do tal rolo. E então, muito tempo após a última visão e sessenta e dois anos depois de fotografados, ressurgimos todos os atiradores da turma de 1951 do Tiro de Guerra nº 46. Todos de novo com dezenove anos, magrinhos, lisinhos, caras de adolescentes ainda. Local da foto: sede do TG, na Rua 13 de Maio, hoje salão da Casa de Cultura Euclides da Cunha.

Aí já se viu: toca a estender o rolo sobre a mesa e a me dedicar ao exercício um tanto masoquista de unir caras, nomes, histórias.

Precisaria haver uma junta consultiva de quatro ou cinco integrantes daquela turma para se esclarecer qualquer dúvida, algumas das mais sérias: o nome exato de cada rapazinho e a certeza comprovada de ele ainda estar vivo. Sim, porque em fotografia daquela idade tão provecta, é de se imaginar um bom número de pessoas que se foram desta para melhor – é o que sempre se espera – e nem se ficou sabendo.

Já na primeira fila do alto localizo três amigos mortos: Libânio Barbosa, o Maninho, durante muito tempo funcionário graduado da Companhia Paulista de Energia Elétrica. Um ótimo sujeito de coração débil. Hélio Garcia, companheiro de grupo escolar, meu quase vizinho, amigo leal de meu sogro e dedicado servidor do Banco Barreto. Sebastião Ribeiro da Silva, espírito indagador, também do Barreto e vítima do câncer.

Ainda na fila superior, lado a lado, três finados precoces: Cláudio Spessotto, do Banco do Brasil e professor de Matemática, sempre atento a questões de português; José Roberto Schiezaro, colega desde os tempos do curso de admissão de D. Laudelina. Bom aluno que um dia embirrou com a Matemática e ficou para trás nos estudos. Tornou-se professor de Inglês e morreu assim no estalo, traído pelo coração; José Jorge, companheiro de infância ali no campinho do Rio Pardo, parceiro em disputadas partidas de buraco em tantos sábados e até sócio num efêmero escritório de advocacia.Sérgio Giordan. Encontrei-o com a pele esverdeada num consultório médico e ele se apressou em me explicar:

- Ih rapaz, sofri uma descarga de bílis daquelas...

Ele sabia que não era descarga de bílis; eu também, mas não havia por que não agir como pessoas que se enganam bondosamente umas às outras, em cumprimento à regra social da chamada mentira piedosa.

Mais mortos. Roque Moreira e Sebastião Chiconello, lembranças da minha mais tenra infância lá no Buracão; Luiz Carlos Torres, o Nim, sempre ligado ao Rio Pardo; o Brandão – como se chamaria de fato o Brandão – aquele sujeito tão bom na marcenaria? Paulo Vieira, eterno funcionário da Refrigeração Nasser; Henrique de Sylos (Lique), um dos muitos filhos do grande educador Mário Robertson de Sylos; José Geraldo Junqueira, colega de Câmara Municipal, numa legislatura; Cláudio Damasceno, inteligência brilhante e médico realizado.  Roberto Del Guerra, companheiro de magistério e de vereança. Toda vez que se trata da constituição de uma ideal câmara de vereadores, infalivelmente o nome de Roberto é lembrado por seu espírito público e por seu empenho nas tarefas que assumiu.

Vivo, vivíssimo, Benedito Martinucci, colega de magistério no “Euclides da Cunha”, apreciador de música erudita e até executor de muitas delas ao órgão eletrônico. Num gesto de bondade e desapego, doou-me recentemente sua rica coleção de LPs da melhor qualidade. Desgostoso com a música? Desgostoso com invencível problema de audição.

Lá estão reconhecíveis entre vivos e mortos: Luiz de Sá Pinto, Reinaldo de Oliveira, Rubens Amato, José Carlos Viegas, Paulo Zacchi; o Bredinha, a quem peço sempre a fórmula milagrosa de manter negros como a asa da graúna os cabelos e o bigode. Ele jura que tudo é natural. Orlando Costa, vizinho aqui da Várzea de antanho, caprichoso encadernador e discreto amigo; Antônio Ricardo Virgilli, por tantos anos o nosso farmacêutico; Mário Salvadori, mestre de obras da Prefeitura  e minha tábua de apoio nas reformas e ampliações da Faculdade de Filosofia; Waldemar Washington Nogueira, o financista Nogueirinha; João Baptista de Souza, o Joca, das mil e uma utilidades, até de  resgatar corpos de afogados no rio Pardo; Carlos Curi: Guilherme Berto, Aléxis Farah Nasser, Osmar Nascimento, Sálvio Cônsolo, Jorge Cury. Quantos mais que se tornaram vagas lembranças sem nome!

Especial a fila de baixo: o primeiro dos três fardados é o sargento Josias Silva (morreu capitão; morava com sua grande família numa bela casa hoje demolida na Praça Prudente de Morais). Entre suas pernas, um dos seus filhos com nome iniciado por Z . Na extrema esquerda, outro filho dele, com Z, naturalmente. O segundo fardado, o jovem tenente da reserva Roque Cônsolo, que chegou a chefiar o ensino em toda a região de Campinas. Ainda hoje, cheio de vitalidade, nas suas noventa e tantas primaveras. A seu lado o sargento Djanir, sucessor de Josias na instrução dos atiradores. De terno branco, o primeiro prefeito eleito após a era Vargas – o comerciante e esportista Palmyro Petrocelli. A bela jovem de vestido claro é Heloísa Lemes Braga, talvez a madrinha da turma. Acompanha-a o pai, Dr. Abdiel Cavalcânti Braga, fluminense de Macaé e um dos mais importantes nomes da fase heróica de implantação do ensino secundário na cidade. Na época da foto era diretor do Instituto de Educação Euclides da Cunha.

Está muito nítida na parede a plaquinha com o número 177. É da Rua 13 de Maio, hoje entrada da biblioteca da Casa de Cultura Euclides da Cunha. Funcionava lá a sede do Tiro de Guerra; lá eram dadas as aulas mais ou menos teóricas, alguns exercícios práticos, como a desmontagem e remontagem do armamento então disponível – o fuzil Mauser (alemão), modelo brasileiro de 1908. Não se ria! É isso mesmo: modelo brasileiro de 1908. E por que modelo brasileiro? Porque lhe tinha sido acrescentada uma espécie de cobertura de madeira (telha) sobre a coronha, em lugar próximo à câmara de combustão dos projéteis, para impedir eventual queimadura nas mãos do atirador, isso se ele disparasse um grande número seguido de tiros. Hipótese remotíssima, porque no período todo de instrução cada um de nós não deve ter dado mais que trinta tiros, num estande improvisado no meio de imenso pasto de propriedade do Sr. Otto Bittencourt, depois loteado e urbanizado com o nome de Vila Formosa.  Alguns de nós ficávamos longe dos alvos, em atitude de alerta, para agir no caso pouco provável de algum passante andar por aqueles distantes ermos.

O fuzil era bom, com alça de mira, capaz de atingir alvos a mais de mil metros. Disparos a cinquenta ou cem metros eram muito precisos, dependendo da destreza do atirador: ao lado de uns descalibrados naturais, cujos tiros tomavam rumo para sempre ignorado, havia um pessoal de primeira linha que acertava no círculo central do alvo quantos tiros desse. Gente que sabia lidar com espingardinhas de chumbo ou de calibre 22, que com elas acertava não só um passarinho, mas o ramo seco em que ele pousara lá no alto de uma árvore...

Havia um sujeito miudinho, moreninho, chamado Ivan, que num raro exercício de tiro real resolveu tomar vingança de seu desafeto – o terrível José Jorge, espírito brincalhão e por vezes impiedoso. José tanto aborrecia o tal sujeito, que quase foi vítima de tiro de fuzil com bala de verdade. Por sorte, a bala passou rente a seu braço que estava em posição de asa de açucareiro. A manga da sua túnica ficou chamuscada. Frustrado o tiro de fuzil, o sujeito ainda tentou de diversos modos matar José Jorge, até lhe oferecendo, muito suspeitosamente, uma bala (doce) em cujo interior ele havia injetado com agulha uma pequena quantidade de gasolina! Nunca mais ouvi falar desse matador em potencial.

Lá uma vez ou outra, raros remanescentes da grande turma ainda se encontram. O belo tempo do Tiro ainda é assunto. Alguns se tratam pelo número que tinham nas chamadas. Quase sempre um adverte o outro que não adianta mentir a idade. Este ano, por exemplo, todos estão na casa dos oitenta e um. É muito chão percorrido!

Eu? Na leveza da idade e do peso, na enorme foto sou o último da direita baixa, com os pés fazendo um difícil ângulo de noventa graus.

 

24/08/2013
emelauria@uol.com.br

 

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