História com passarinhos

 

 Vi um dia destes algumas cenas muito tristes envolvendo o que classificam como o terceiro  negócio mais lucrativo do mundo – o comércio ilegal de animais.

 

Supondo que o primeiro desses negócios seja o de drogas e o segundo o de armas (se não for o de mulheres), não deixa de ser desalentador saber que por ganância mamíferos e aves são cruelmente capturados, mais cruelmente transportados e os sobreviventes vendidos a preços muito compensadores.

 

Dão até um exemplo: num lugar infecto e muito apertado, aqui no Brasil, foram encontrados trezentos pássaros-pretos que seriam levados para a Europa. Lá chegariam em boas condições de vitalidade não mais do que dez. No entanto, os preços alcançados por esses dez seriam tão compensadores, que as duzentas e noventa vítimas de tanta ambição não fariam a menor falta.

 

As leis brasileiras de proteção à fauna são rigorosíssimas. Quem não conhece casos de pessoas daqui de nossas bandas que enfrentaram desgastantes processos? Num gesto de defesa da propriedade agrícola, atreveram-se a abater algumas capivaras, animais hoje em franco processo de superpovoamento e por isso mesmo um perigo concreto para milharais destruídos à passagem de um bando delas...

 

Muito divulgado foi o conselho dado por ex-governador de estado, por nome Amazonino Mendes, aos coureiros, aqueles profissionais dedicados ao abate clandestino de jacarés na Amazônia:

-- Se vocês forem descobertos pelos fiscais do Ibama, o melhor que fazem é matar os fiscais, porque assim poderão responder ao processo em liberdade...

 

Claro que se trata de exagero, mas a lei transformou qualquer transgressão à proteção da fauna em crime inafiançável. Mais grave do que homicídio culposo.

 

Em face de tudo isso, desapareceram quase todas aquelas criações que envolviam pássaros canoros, como sabiás, pássaros-pretos, canários-da-terra, bigodinhos, pintassilgos. Só são legais em cativeiro os canários-do-reino e os periquitos-australianos, espécies alienígenas. Meu amigo Joel Bicalho Tostes tentou sem êxito comprar até a preço exorbitante um prodigioso curió de propriedade do recém-falecido Mário Raddi. O argumento do dono era irrespondível: tratava-se de passarinho de muita estimação, sem valor comercial, portanto.

 

Nunca tive pássaro algum engaiolado, mas meu pai os teve e os tratava com muito empenho. Escrevi sobre eles, especialmente sobre dois, um deles o cardeal que apareceu aqui em nosso quintal. Deveria ser ave de longo cativeiro que ganhara assim por acaso a liberdade e não sabia/podia desfrutá-la. Preferiu voltar à certeza da comida farta, da água limpa, da proteção do dono e não correr o risco da fome, da sede, da dura concorrência com outros pássaros criados soltos. O final da vida do cardeal foi difícil, porque perdera até as forças de alçar-se aos poleirinhos da gaiola. Só ficava no chão, com dificuldade de andar, tão compridas estavam suas unhas... Meu pai as aparou  sempre, mas a avezinha deve ter morrido de inanição e de pura velhice. O outro era um sabiá, a cujo respeito escrevi há mais de vinte e cinco anos.

 

Transcrevo de Tempo & Memória, livro meu de 1986:

“1. Não o ouvi jamais cantar, quando em liberdade. Disseram-me que, nas claras madrugadas de verão, ele já abria o peito em nosso quintal, mais precisamente numa jabuticabeira. Embora houvesse uma laranjeira por perto, sabiá-laranjeira nem sabe que seu  nome todo é este, e acaba cantando onde melhor lhe convém.

 

Um outro sabiá cinzento, quase que nascido na gaiola, respondia nota por nota ao descante do forasteiro. Mesmo na prisão, é preciso assegurar a posse de um território, que por isso, principalmente, cantam os pássaros. Pensamos que eles cantam de saudade ou para nos agradar, quando o fazem para definir área sua e para conquistar uma companheira. Por aí se vê como o homem tem imaginação e como inventa motivos.

 

Um dia, o sabiá-laranjeira se deixou apanhar com inesperada facilidade: bastou ao menino fechar a porta do galinheiro então vazio e segurá-lo com a mão, mesmo, porque logo o cansaço o impediu de continuar a debater-se contra a tela de arame.

 

Vejo-o preso e desajeitado na gaiola, que parece até confortável. Tom predominante, o de cobre velho, especialmente no peito, forte e másculo. É cego do olho direito, o que explica a sua fácil captura. Está ainda arisco, mas acabará por aceitar a presença de estranhos. Até nós acabamos por.

 

Cantará. Cantará e perderá um gesto muito seu, que o distingue do outro sabiá – cativo de nascença – de tempos em tempos, olha para o alto com o olho bom e deixará clara a tenção de que, de uma hora para outra, alçará um largo vôo de libertação.

 

“2. Não alçou nenhum vôo de libertação, mas acabou fugindo da gaiola. Saiu pelos fundos, aproveitando-se de um momento de vigilância relaxada. (Afinal, nem todos os atos de afirmação, por nobres e dignos que sejam, revestem-se de beleza formal.)

 

Eu, favorável ao sabiá liberto, achei ótimo. Quem sabe não só eu, mas até o dono dos sabiás prisioneiros, porque além do tempo que se gasta em tratá-los, a ração está pela hora da morte. Quem mantém passarinho engaiolado, não o solta por dó, as aves não sobrevivem soltas. É o que dizem.

 

Não entendi nem gostei quando me informaram que o sabiá-laranjeira fugitivo continuava por ali, nas árvores do quintal, cantando (com licença do Raimundo Correia) desde que raiava sangüínea e fresca a madrugada.

 

“3. O outro menino, com forte vocação passarinheira, veio com sua tentativa meio absurda:

-- Abasteceu de comida e água a gaiola desocupada, colocou-a de porta aberta nas proximidades da jabuticabeira e esperou.

 

Não demorou muito  e lá estava dentro o sabiá-laranjeira, cego de um olho, peito de cobre velho. Faminto e espontaneamente recluso.

 

Hoje, ele ainda não come na mão, como o outro. Talvez nem comerá jamais, porque estas coisas se aprendem de pequeno. Aceita, contudo, a convizinhança do sabiá cinzento, do cardeal cerimonioso, a presença da gente. E canta. Lépido e saudável, canta o dia todo, confirmando-me a impressão de que a tristeza de canto de pássaro está, antes, dentro de quem escuta. Se uma lâmpada é acesa durante a noite, ele retira logo a cabeça de sob a asa e canta, sem fastio nem sono.

 

Não perdeu, é verdade, o gesto muito seu de olhar para o alto com o olho bom.

 

Mas já não me engana com aquilo que falsamente interpretei como clara tenção de alçar, de uma hora para outra, um largo vôo de libertação. (...)

 

“4. Eu teria gostado que mais uma vez o sabiá-laranjeira tivesse conseguido conquistar os ares, livrando-se das tentações das jabuticabeiras próximas. E que, à semelhança do canário-filósofo de Machado, um dia, encontrando-se com a gente, perguntasse com o ar mais natural:

-- Viva, Sr., por onde tem andado que desapareceu?

 

A verdade é bem mais simplificada: ele morreu na gaiola. Foi encontrado pela manhã, durinho, com umas formigas apossando-se de seus olhos, tanto o cego quanto o bom, sem nenhum véu de alegoria em tudo isso.”

 

24/07/2004
(emelauria@uol.com.br)

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