O rescaldo da viagem
Tenho em mão o meu artigo original com o título acima, publicado na última página do “Caderno B” deste Democrata, de 23 de novembro de 2002. A viagem que lhe deu origem foi das mais importantes para o euclidianismo, porque fomos a Brasília para participar da sessão da Câmara dos Deputados comemorativa do centenário de lançamento de Os sertões. Daqui saiu lotado um ônibus com mais de quarenta pessoas, representativas das mais diversas classes culturais e políticas da cidade. O artigo, com mais de mil toques, agora reduzido a uns oitocentos, tem subtítulos que fazem referência à viagem, à bela impressão deixada pela sessão solene e pela sempre surpreendente capital brasileira.
DE TIRAR O FÔLEGO O restaurante da Câmara dos Deputados situa-se no décimo andar do edifício principal da Casa e é dirigido por um casa-branquense muito solícito. Não bastasse a visão privilegiada que se tem daqueles altos, qualquer foto tirada dali pode levar a vantagem de se enquadrar na moldura redonda das aberturas de luz e ar. Será necessária muita incompetência para se estragar fotograficamente aquela paisagem única.
ENTRANDO NA CATEDRAL Somente um agnóstico muito em paz com a vida e consigo mesmo poderia conceber aquela planta arrojadíssima. Imaginar, na entrada em desnível, aquele corredor em permanente penumbra, como tendo a destinação específica de convidar o visitante a ir-se exonerando de todas as cargas do cotidiano – isso já é coisa de místico. Salve, pois, o agnosticismo e o misticismo marxista de Oscar Niemeyer!
PROGRESSO TECNOLÓGICO SIM; DESEMPREGO NÃO! Moderníssimo o aparelhamento eletrônico a serviço da Câmara dos Deputados e certamente também do Senado Federal. Os textos lidos na sessão euclidiana de 13 de novembro estavam todos digitados, certamente pelos funcionário legislativos de cada orador inscrito. Tudo o que disseram foi gravado em vídeo, além de transmitido ao vivo para todo o Brasil através da TV Câmara. No entanto, sabem qual anacronismo funcionou ao lado de tanta modernidade? Nada menos do que o serviço de taquigrafia. Sim, senhoras e senhores, a Câmara (e certamente o Senado) mantém um caprichado serviço de taquigrafia, que já não faz jus ao nome. Tachys em grego quer dizer rápido. Qual a rapidez da tachygraphia em face do imediatismo da informática? Ao longo da sessão comemorativa, que durou cerca de noventa minutos, fizeram as anotações taquigráficas ao menos umas oito jovens. Ora, dirão, e daí? Daí que ao que tudo indica, esse tipo de serviço está superado. Como, porém, dispensar aquele batalhão de belas moças, certamente bem remuneradas e estabilizadas no serviço público? Brasília não foi criada para economizar, mas para ser o centro da gastança nacional, vocação estimulada por JK desde que amadureceu a ideia de transferir a capital da República para o planalto central.
O MELHOR DE TODOS Pergunto ao amável e cético Cláudio Coletti, o jornalista que chegou a Brasília uns dias antes da inauguração da cidade: - Nestes anos todos, quais as figuras de políticos que mais o impressionaram? E ele responde: - Resumo as qualidades de honestidade, espírito público, capacidade de trabalho, cultura, dignidade e respeito ao próximo numa só pessoa: André Franco Montoro.
O MILAGRE DA LÍNGUA NO BRASIL É bem verdade que a mesma raiz comestível pode ser chamada mandioca, macaxeira, aipim, dependendo de onde se estiver. É também verdade que uma fruta cítrica seja bergamota no sul, tangerina no Rio, mexerica em São Paulo. Mais verdade, contudo, é a unidade estrutural da língua falada em Brasília – uma babel de sotaques, chiados e expressões locais do Brasil todo. Manter-se íntegra a língua portuguesa em mais de oito milhões de quilômetros quadrados é milagre linguístico de particular grandeza. Para se ter uma justa comparação, a Europa Ocidental, num território menor do que o Brasil, fala português, espanhol, catalão, basco, provençal, francês, flamengo, alemão sardo, rético, inglês, sueco, dinamarquês, norueguês, finlandês, romeno... O risco de ruptura em nossa fala está cada vez menor, graças ao crescimento dos meios de comunicação e se chega ao ideal há já tempo vislumbrado pelo notável linguista Celso Cunha: A unidade na variedade. Nem se sabe se num futuro distante se poderá dizer que a língua praticada no Brasil venha a chamar-se brasileiro. Pelo critérios científicos de caracterização da autonomia linguística, continuaremos falando o português, em sua dinâmica vertente brasileira. Afinal de contas, o que caracteriza a existência de uma língua autônoma não é a pronúncia nem o vocabulário, mas as palavras gramaticais, ou seja, os artigos, os possessivos, os relativos, as preposições, as conjunções. E essas classes de palavras gramaticais continuam as mesmas tanto em Portugal, quanto em Angola ou Moçambique. E no Brasil todo, apesar das particularidades de fala em tal ou qual região, o que predomina amplamente é a boa e enriquecedora tendência de manutenção da unidade na variedade.
24/06/2017 |