Do fundinho do baú
(Texto recauchutado)

 
Capela de Santa Teresinha (foto minha 1952)

 

O fim de uma ilusão

Era muito, muito criança e ainda morava na rua onde nascera – a José Teodoro, no Buracão. Acreditava seriamente em Papai Noel, a quem para o vindouro Natal pedira um velocípede.

Bem que viu, no comecinho de dezembro, o pai examinando um tipo esquisito de bicicleta. Bem que ouviu também  de um dos meninos mais taludinhos uma frase que abalaria sua profunda convicção: “Papai Noel não existe. Papai Noel é o pai da gente...”

Não se vexe o paciencioso leitor se não souber o que vem a ser “velocípede”, o presente que chegou (nunca se soube como) na manhã certa: tipo de bicicleta, melhor dizendo, triciclo muito primitivo, todo de ferro –  rodas, quadro, selim, guidão. Depois teve certeza de que aquele velocípede era a mesma estranha bicicleta que o pai examinara dias antes.

Fácil de andar? Não. O pedal era fixo e sem catraca, exigindo muito esforço. Freio, nem pensar. Além do mais, onde encontrar, na São José de setenta e tantos anos menos, lugar para a prática com tal máquina pré-histórica? Só muito, muito depois é que usar bicicleta por aqui ficou mais viável com o câmbio de dezoito, vinte marchas, que tornou possível pedalar pela maioria de nossas íngremes ruas. A subida do início da Rua Marechal Floriano ainda é duro obstáculo até para os muito bem preparados.

Decepção: com pouco tempo de uso pelo dono e seus companheiros de aventura, ali por perto da capela de Santa Teresinha, as raias de ferro do velocípede começaram a desprender-se, inutilizando o esquisito presente. Ele nem imaginaria, mas alguém lhe disse que cada uma das duas rodas ainda quase inteiras podia servir de brinquedo autônomo, desde que manejada com habilidade por um guiador de arame grosso e de bitola bem ajustada. Assim foi feito, mas de que modo alguém pode explicar a um menino de hoje como é que se brincava de rodar arco pela rua poeirenta do Buracão?

 

A perda imperdoável

Não era tão criança, porque terminava o curso ginasial, a oitava série de hoje, com quase quatorze anos. Ganhou, já no mês de dezembro, um cobiçadíssimo presente, espécie de relíquia familiar, ignora-se lá com que vida pregressa: nada menos do que a caneta-tinteiro dourada, marca Broadway, trazida sempre fechada numa gaveta de criado-mudo. Ganhou porque iria receber o sonhado diploma de conclusão do curso e, ainda mais, estava-se nas vésperas do Natal. Dois coelhos abatidos com uma só canetada.

De posse da caneta-tinteiro,  reluzente objeto de seu contido desejo, passou caol nela e a encheu de tinta Parker, azul-escura, comprada na Typographia Oliveira. O que escrever de marcante com ela, se as longas férias mal haviam começado? Então se descortina oportunidade ímpar: um sobrinho e afilhado da mãe, seu primo portanto, iria ordenar-se padre e mandou especial convite à madrinha. Daqueles tão especiais, que o melhor era mesmo não ir,  ainda  mais que a ordenação seria em distante cidade. E assim surgiu a elegante ideia de passar-se um telegrama, gesto protocolar muito fino e um tanto caro para os padrões familiares.

Difícil, quando não impossível, explicar às pessoas que usam e abusam dos revolucionários avanços tecnológicos de nossos dias que naqueles recuados anos telegrama era chique e de raro emprego. Ia-se à agência do Correio, anunciava-se o que se desejava,  recebia-se o formulário adequado que se preenchia de próprio punho. Por aí se pode avaliar a raridade do uso do telegrama, a não ser em situações excepcionais, principalmente para comunicar falecimentos de familiares a parentes que moravam longe.  Na maioria dos casos, um funcionário postal até se encarregava de escrever a mensagem, se o remetente não o soubesse fazer ou estivesse sob forte emoção. Ora, objetará algum leitor apressado, por que não telefonar, ao invés de telegrafar? Respondo eu: telefone era outro artigo de alto luxo, na cidade toda deveria de haver só umas centenas deles, geralmente em casas de comércio. Hoje no Brasil há mais celulares do que habitantes.

Muito mais difícil de acreditar-se é que um concluinte do curso ginasial tivesse aprendido com seu professor de Português  a redigir telegramas, respeitada sempre a expressa recomendação  de excluírem-se adjetivos supérfluos, artigos e preposições, porque a tarifa telegráfica era cobrada  de acordo com o número de palavras empregadas no texto.

Ele nunca soube se alguém acompanhara, com o rabo dos olhos e uma ponta de inveja até, aquela complexa operação de redigir telegrama  no balcão do Correio (ficava na Rua João Pessoa, hoje Francisquinho Dias, em casarão agora demolido onde funcionou por décadas a Drogaria d’Osmar). Sim,  um telegrama destinado a um primo, afilhado de batismo de sua mãe (ele hoje, aos noventa e dois anos, vivíssimo, corado, feliz) que desde a mais tenra idade tinha certeza da vocação sacerdotal. E, ouro sobre azul, usando para tão raro momento uma caneta-tinteiro Broadway dourada. Pois tudo decorreu assim. Terminada a complexa operação, a diligente funcionária deu-lhe o comprovante de remessa, devidamente autenticado com um carimbo à moda antiga: Departamento de Correios e Telegraphos.

Quando, em casa, foi mostrar à mãe a prova cabal do cumprimento de tão nobre tarefa, teve um arrepio: no mesmo bolso em que guardara o recibo, deveria estar também a caneta-tinteiro Broadway, banhada a ouro, como lhe assegurara o pai. E procura que procura. Nada! Inúteis todas as buscas, as perguntas, a refeitura cuidadosa do trajeto percorrido. Nunca mais se teve notícia da caneta, antes de tudo um presente emblemático, uma espécie de iniciação na vida de adolescente e na trabalhosa disposição para escrever.

Não se tocou mais no assunto em casa –  evidente sinal  de que a perda havia sido muito sentida pelo pai, pela mãe e, principalmente, pelo amargurado ginasiano.

 

O calombo no dedo

No Grupo Escolar Dr. Cândido Rodrigues a maioria das crianças andava descalça. Costume e necessidade. Tirante os mais ricos, alguns usavam uns tênis simplesinhos, quase sempre marrons e de solado fino, muito feios, de esquisita marca – Fanabor, supostamente Fábrica Nacional de Borracha. Outros, um precário tipo de calçado posteriormente reabilitado por estilistas de renome –  uma lona rústica aplicada à sola de corda. Isso mesmo, as alpargatas Roda, em outros tempos mais conhecidas por chinelos de espanhol.

Ele, como tantos outros colegas, tinha um só par de sapatos que serviam para tudo –  ir à escola, à missa, a outras poucas ocasiões sociais importantes. No resto do tempo, pés descalços, braços nus, atrás das borboletas azuis, como rimou à moda carioca o poeta saudosista. Daí o ritual diário imposto pela mãe: chegava-se da aula e, antes de tudo, precisava-se tirar o uniforme, lavado sábado à tarde (calças curtas azul-marinho com suspensórios cruzados às costas e blusa branca, ostentando no bolso um caprichado monograma CR com uns risquinhos abaixo, indicadores do ano em que o aluno estava) e descalçar depressinha os sapatos de ver Deus, conforme se explicava.

Então um outro primo não propriamente rico, mas filho de pais abonados, ofereceu-lhe (e logo se descobriria por quê) um par de sapatos praticamente novos, daqueles bem toscos, fabricados por um dos muitos sapateiros da cidade. “Esmola demais o santo desconfia” –  era como se dizia então. Ele não tinha razões para pensar mal do generoso primo. Aceitou a dádiva  e andou por aqui e ali com aquela peça lustrosa, firme, dura mesmo. Era preciso lassear o calçado. Ao fim do dia, umas bolhas nos pés, a mais dolorida de todas no segundo dedo da direita, pé direito.

Não disse nada a ninguém e continuou com crescente desconforto usando os sapatos doados, o tal dedo incomodando cada vez mais. Quando começou a mancar de modo mais visível, a mãe passou-lhe uma revista e ficou espantada com o aspecto daquele dedo engrossado, esbranquiçado,  infeccionado.

Levou-o à Pharmacia Nossa Senhora Apparecida, onde o Sr. Galileu Rondinelli, depois de lhe dirigir umas engraçadas reprimendas, aplicou-lhe dolorosa injeção antitetânica e uns tapinhas complementares no bumbum à mostra.

Durante uns dias foi à escola como era de praxe à época e em situações análogas: com um pé descalço e outro calçado.

O dedo lesado é até hoje diferente dos outros, porque portador de um visível e indelével calombo.

 

24/05/2014
emelauria@uol.com.br

 

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