Nas entrelinhas da carta

Aí está o original título da obra escrita para ser a memória do cinquentenário de fundação da diocese de São João da Boa Vista, que transcorrerá a 31 de julho de 2010. Seu autor, o cônego João Antonio Darcie, vigário da paróquia de São José, a mais antiga de nossa cidade.

Surpreende-me a beleza da apresentação material do livro: capa dura, papel de ótima qualidade, ilustrações nítidas, elegância e discrição de todos os seus dizeres e em todos os seus aspectos. Pelo que sei, cada volume teria um valor comercial superior a cinquenta reais. Sua colocação à venda por menos da metade dessa quantia é consequência do reconhecimento do alto sentido educativo da obra, destinada não apenas a comemorar condignamente uma data significativa de uma igreja particular, mas a integrar aquele rarefeito número de escritos que, por sua originalidade e veracidade, terão lugar permanente em qualquer estudo sério que se faça a respeito de vasta região do interior paulista.

Na verdade, minha surpresa com o aspecto exterior e material do livro não foi a primeira, porque eu já havia ficado agradavelmente impressionado com a originalidade e substância de seu conteúdo, que tive o prazer de ler quando ainda em elaboração, para adequar os escritos do cônego Darcie às  exigências da gramática e da nova ortografia, ainda em fase de implantação nos países de língua portuguesa.

Não sendo propriamente um iniciante na difícil tarefa de colocar textos alheios nos rígidos esquemas da correção linguística, ao aceitar a incumbência que me passava o cônego, fiquei imaginando o trabalho árduo que me esperava. Felizmente, engano de fácil comprovação: o que me chegava para leitura crítica, na maioria de suas páginas não me exigiu nenhuma observação, nenhum reparo, tal a excelente qualidade de sua redação original.

Encantou-me, isto sim, a carpintaria da obra, a sua preocupação com a verdade histórica, exposta de forma  pedagogicamente irretocável, com base em documentação que comprova leitura acurada de fontes das mais diversas e uma capacidade pessoal de interpretação que só alguém dotado de sólida formação humanística poderia elaborar.

Conforme  é do seu estilo como evangelizador, o cônego Darcie  imaginou, para travejar e concretizar seu escrito,  uma carta, que o leitor conhecerá ao longo da leitura  do livro. Sua base bíblica está na 2.ª epístola de São Paulo aos Coríntios: Vós sois a carta de Cristo.  João Antonio Darcie se preocupa  em valorizar alguns inesperados elementos integrantes de uma carta, como as folhas do papel usado, com suas diversas e significativas cores, a caneta, a tinta, o tinteiro, os redatores, o carimbo, o selo, o endereço, o envelope, a escrivaninha e suas gavetas, as agências do correio, a cola, as caixas de coleta da correspondência, os agentes, os carteiros, o recebimento-envio, o destinatário e a assinatura... Nem parece que o resultado final dessa alegoria  possa ser, como de fato o é, a memória viva da história geral de vasta região do leste paulista, nesta história geral privilegiada a história da trabalhosa implantação do Catolicismo, ao longo de duzentos e setenta anos, contados da fundação da paróquia da Imaculada Conceição, em Mogi Guaçu.

(Um parêntesis elucidativo: cioso de manter a autenticidade de toda informação alheia aproveitada na elaboração de sua obra, o cônego Darcie respeitou a maneira tradicional como os nomes de lugares e seus respectivos adjetivos são escritos por seus dirigentes e habitantes, contrariando  embora a forma consagrada pelos vocabulários ortográficos vigentes. Daí escrever Mogi Guaçu, sanjoanense  quando as normas da língua mandam grafar Mojiguaçu, são-joanense... Alguns outros casos confirmarão essa tendência de ir ao encontro do realmente usado pelas comunidades da região, que não aceitam formas como Mojimirim  ou  Piraçununga...)

Considero os capítulos II e III os de mais fatigante pesquisa documental, porque  tratam da longínqua localização do atual território da diocese de São João da Boa Vista no atlas histórico-geográfico do Brasil, levantando questões difíceis como a assimilação religiosa dos índios, dos escravos,  dos imigrantes na vida cívico-espiritual de nossas comunidades.

Quem sabe, por exemplo, que  nossa região, como o Brasil todo, à época do descobrimento passou a pertencer eclesiasticamente ao vicariato de Tomar e depois à diocese de Funchal, na ilha da Madeira? Com certeza por ser essa ilha oceânica o domínio português mais perto (ou menos distante) das novas terras descobertas por Cabral...

Em 1551, criou-se a primeira diocese brasileira, a de Salvador, Bahia, com circunscrição em todo o vasto e inexplorado território. Esta nossa região, por breve período e tênue fio, esteve eclesialmente ligada à Bahia, dela se desvinculando com a criação da diocese do Rio de Janeiro (1676). Apenas em 1745 se erigiu o bispado de São Paulo, do qual, muito mais tarde, se constituiria o de Ribeirão Preto, de onde se originou o de     São João da Boa Vista. Longas voltas que a História dá...

Se a obra  Nas entrelinhas da carta fala especificamente da ereção da diocese de São João da Boa Vista, por isso mesmo fala das cidades e das paróquias que a integram. E aí está outro ponto de particular interesse do livro agora comentado. É que, pela diligência e capacidade de persuasão do cônego Darcie, todas as cidades e todas  as paróquias enviaram-lhe interessante material, inserido nele com o máximo respeito à versão dada pelos sacerdotes e historiadores locais. Basta conferir a ampla bibliografia consultada pelo cônego Darcie para se ter a certeza de como houve total respeito ao que corre como história, como folclore ou como lenda em cada uma das cidades diocesanas.Isso quer dizer que a obra pode ser vista, analisada e aproveitada como um todo (a história da diocese) e como partes autônomas e articuladas (as cidades e as paróquias). Com essa peculiar visão das coisas, seu autor  sistematizou e valorizou inúmeras versões  que, de meros casos de interesse específico desta ou daquela cidade, ganharam  outra dimensão, qual seja a de passarem a integrar um universo maior, abrangendo, no mínimo, a  extensão territorial da diocese.

Cito, sob este enfoque, a ênfase dada a autores como Theophilo de Andrade (São João da Boa Vista), Ricardo Artigiani (Mogi Guaçu), Adriano Campanhole (Caconde), Francisco de Assis Coreia (Ribeirão Preto), Pe. José Wagner Cabral de Azevedo (Tambaú), Rodolpho José Del Guerra (São José do Rio Pardo), Carlos Gustavo Fiorini (Santa Cruz das Palmeiras), Geraldo Majella Furlani (Casa Branca), Ralph Mennucci Giesbrecht (Santa Cruz das Palmeiras), Orlanda Maria Grespan de Faria e Válter Roberto Lopes (Divinolândia), Márcio Eduardo Dias Porto Kitano (Tapiratiba), Roberto Vasconcellos Martins (Espírito Santo do Pinhal), Jonathas Mattos Júnior (São João da Boa Vista), Carlos Alberto Paladini (Mococa), Maria Leonor Alvarez Silva (São João da Boa Vista), Amélia Franzolin Trevisan (Casa Branca e São José do Rio Pardo)...   

O material iconográfico   abrigado neste livro é de alta qualidade, muito variado e de inegável importância histórica. Exemplo disso é a reprodução muito nítida da transcrição manuscrita, em latim, da bula papal   In similitudinem Christi (À semelhança de Cristo), que cria a diocese de São João da Boa Vista, desmembrada da arquidiocese de Ribeirão Preto (em latim  Rivi Nigri...)  

O estudioso da história local e regional encontrará neste belo livro material riquíssimo para pesquisas mais pormenorizadas, ao mesmo tempo que o leitor comum se dará por muito satisfeito com as particularidades de sua cidade, de sua paróquia, contadas por quem as colheu das melhores fontes e as entregou a um sistematizador  eficiente e competente, que soube valorizar o rico e heterogêneo material  que lhe chegou às mãos e mereceu o mais respeitoso tratamento.

Não há a mínima dúvida   de que o autor  de Nas entrelinhas da carta  atingiu em cheio o que ele chamou “a tônica do texto”, explicitada à página 18 da livro:

Fatos são fatos. Escavar o passado é redimensionar o presente que os rejuvenesce; avivar o presente é apontar o futuro que os recria. Interessa-me nesta Memória exercitar cidadania, na reconstrução de vícios e de virtudes do Povo de outrora para conhecimento e avaliação dos Cidadãos de nossa era democrática.

Com isso, o cônego  João Antonio Darcie  cumpre com todos os méritos a tarefa que lhe coube e apresenta  um livro denso, agradável e meditado, em que Fé e Razão caminham harmoniosamente, lado a lado.

 

DADOS BIBLIOGRÁFICOS :

Apresentação – D. David Dias Pimentel, bispo diocesano
Orientação gráfica   e capa – Márcio Silvestre da Silva
Orientação eletrônica – Maurício de Lima Soares
Suporte na elaboração – Luís Fernando da Silva
Editoria – GRASS – Gráfica de São Sebastião da Grama                    

 

24/04/2010
emelauria@uol.com.br)

 

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