Dois centenários à vista
Não tão próximos, é verdade, mas já vislumbráveis, os centenários da morte dos maiores e mais antagônicos nomes da literatura brasileira – Machado de Assis e Euclides da Cunha. A 21 de setembro de 2008, o de Machado de Assis, para boa parte dos estudiosos o maior escritor brasileiro, além de muito amado por um renovado público que se encanta com o enigma de Capitu, com a ironia, o humor e o ceticismo presentes em seus romances e contos, com a profundidade psicológica de seus personagens. A 15 de agosto de 2009, o de Euclides da Cunha, o descobridor de um novo Brasil, que estudou com paixão e comprometimento. Machado foi um legítimo homem de letras, embora não tivesse vivido apenas do labor de sua pena, porque funcionário público graduado, chegando a diretor-geral do Ministério de Viação. Teve reconhecimento público em vida, foi fundador e presidente perpétuo da Academia Brasileira de Letras, por antonomásia a Casa de Machado de Assis. De seu enterro se tem histórica foto, reproduzida pela revista “Dom Casmurro”, de setembro/outubro de 1946. Lá estão, alcançadas por uma objetiva de grande abertura, as personalidades da época, todas de roupa escura, chapéu e bengala . Inclusive Euclides da Cunha, bem visível na primeira fila. Euclides, se quis ver publicado aquele calhamaço de duas mil folhas manuscritas – Os Sertões, teve de custear-lhe a primeira edição de modestos mil exemplares e correr todos os riscos disso. Acabou tendo um pequeno lucro, que dividiu religiosamente com José Augusto Pereira Pimenta, seu paciencioso calígrafo aqui de São José do Rio Pardo, a quem enviou com aritmética minúcia, através de Francisco Escobar, uma ordem de pagamento correspondente a dez por cento dos proventos obtidos com a venda do livro. Nunca se considerou um homem de letras; ao contrário, fez questão de se safar desse carimbo, porque para ele os elogios que lhe faziam das qualidades literárias não passavam de matreira forma de impedir a análise aprofundada das mazelas resumidas na frase “Canudos foi um crime. Denunciemo-lo.” A Academia Brasileira de Letras, centenária entidade que vive na abastança com os aluguéis de parte de seu edifício de vinte ou mais andares, situado em área nobre do Rio de Janeiro (Avenida Graça Aranha), tem todas as condições de patrocinar a digna comemoração das duas efemérides. Alguma coisa me diz, porém, que a ABL privilegiará o centenário de Machado, como o fez no de nascimento de ambos, ocorridos em 1939 e em 1966. Quando, no começo dos anos 80, se tomaram as primeiras providências para o almejado traslado dos restos de Euclides da Cunha e de Euclides da Cunha Filho do cemitério de São João Batista para São José do Rio Pardo, a Academia se opôs à idéia, como se opôs a cidade natal Cantagalo, como se opôs a imprensa carioca. Apenas a firme determinação e coragem da família de Euclides, liderada por Joel Bicalho Tostes, casado com uma das netas de Euclides, tornaram possível a transferência, solenemente encerrada a 15 de agosto de 1982. Por essas e outras, tenho comigo que se quisermos lembrada a figura de Euclides e ressaltada a importância de suas obras, mormente Os Sertões, teremos de planejar um “Ano do Centenário”, com abertura a 15 de agosto de 2008. E como dar a esse “Ano” a repercussão nacional que o escritor merece? Sem dúvida através de ações não espetaculares, mas bem planejadas, envolvendo a Casa de Cultura Euclides da Cunha, a Prefeitura e a Câmara, todos os escalões do Governo, nossos representantes nos níveis estadual e federal, o empresariado, a grande imprensa, a televisão, entidades particulares, as escolas superiores, e por aí a fora. Tratar-se-á de trabalho que, no âmbito local, envolverá dois prefeitos, duas câmaras, dois diretores de Casa Euclidiana, ou seja, duas equipes que saibam cumprir sua respectiva tarefa: a primeira, dos atuais mandatários, incumbida de planejar detalhadamente o evento e dar início à sua execução; a segunda, dos futuros administradores e legisladores que serão eleitos no final de 2008, a quem caberá prosseguir com o que tiver sido iniciado, dando a tudo um sentido de continuidade e respeito aos esforços de outrem. Sei que isso é difícil, para não dizer quase impossível, tendo em vista a tendência dos recém-eleitos de não dar valor ao que receberam de seus antecessores. Como, porém, não haver um acerto de relógios, de tal forma que os que saírem tenham a certeza de ser útil o que fizeram, de ser harmonioso um empenho que tem por objetivo dar visibilidade nacional à cidade e ao seu grande filho adotivo? Imagino a magnitude da tarefa, muito mais de planejamento realístico do que de gastos incompatíveis, muito mais de prévio entendimento entre os titulares de cargos e os candidatos a prefeito, a vereador, de tal forma que todos se sintam comprometidos com a missão indelegável da cidade com relação ao euclidianismo. Chegar a esse estágio de maturidade política só engrandecerá os seus participantes. Um concurso denominado “Centenário de Euclides da Cunha” terá de ser lançado em 2008, com premiação não só definida mas também compatível com sua meta – atrair concorrentes de nível nacional. Isso, aliás, aconteceu com o prêmio “Centenário de Os Sertões”, criado em 2001, julgado por uma comissão designada pela Casa de Cultura e solenemente entregue em 2002 a seu vencedor, um professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Os conferencistas e professores da SE-2008 terão de mostrar capacidade de compreensão da complexidade do universo euclidiano, abrindo caminhos aos mais novos, estimulando debates, propiciando outros enfoques das questões levantadas por Euclides e ainda hoje de uma atualidade que só nos entristece. O lema da Semana Euclidiana de 2008 e a temática das aulas dos Ciclos de Estudos Euclidianos hão de ressaltar a grande preocupação dos euclidianos – mostrar que o estudo da obra de Euclides, a par dos lances dramáticos de sua vida conturbada, há de ser um meio hábil para o conhecimento dos problemas brasileiros, de cujos estudos ele foi pioneiro. Sempre me pareceu muito clara a relação existente entre o êxito do euclidianismo e a adesão da Universidade à reflexão atualizada dos temas pioneiramente suscitados por Euclides da Cunha. Daí a evidência que as escolas superiores locais – FEUC e UNIP – deverão ter nas atividades do Centenário. Sem essa adesão, mais a das universidades públicas paulistas, todos os estudos euclidianos correrão o risco de se perder na mesmice das repetições de certos conceitos cristalizados e de certas frases de efeito. A obra euclidiana tem campo para inúmeras pesquisas. É mister motivar os pesquisadores. Haverá quem coloque em dúvida a oportunidade deste alerta e de algumas sugestões contidas nele. Contudo, dada a magnitude do que Euclides da Cunha representa não só para a literatura brasileira, mas para a cultura brasileira, nossa cidade não pode deixar-se atropelar pelos fatos e assistir, impassível, à perda de substância do que se venha a fazer em favor do grande escritor e maior patriota. Não podemos conformar-nos com o vôo rasteiro de certas ações, com o abandono sumário de boas idéias, com o fatalismo conformado do Jeca Tatu, para quem nada paga a pena. Não podemos ter dúvidas entre escolher o imediatismo dos plantadores de couve ou a visão ampla e generosa dos plantadores de carvalho. Rui Barbosa dissertou muito bem sobre isso.
24/03/2007 |