De repente, outra vez
Com certeza tudo de bom e de mau, tudo de lembranças e esperanças alguém já explorou, sem deixar nada, nadinha para você dizer de original, espontâneo e benfazejo a respeito do Natal. Não é qualquer dia que se tem coragem de dizer/escrever benfazejo. Que fique o belo termo como a contribuição pessoal nesta quadra festiva. Natal benfazejo cai bem. Não tenho motivos de queixas quando penso nos natais de minha meninice. Lembro-me de ter ganho aos quatro ou cinco anos um automovelzinho de lata, vermelho reluzente, com direção, pedal, rodas compactas e sem buzina ou farol. Só cabia nele uma pessoa, como nos carros de corrida. Com pouco esforço, posso me ver guiando a baratinha na calçada que ia do comecinho da Rua do Paraíso até o fim da casa de minha tia Zaíra, já na José Teodoro. A baratinha deve ter sido consumida pelo uso excessivo meu e de algum companheiro de brinquedo. Ainda no Buracão e antes dos sete anos, ficou claro para mim que Papai Noel não existia, que era o pai da gente, mesmo. Tudo porque vi meu pai negociando com alguém a compra de um velocípede de ferro, pesadão, que depois descobri, fingindo surpresa, atrás da porta da sala na manhã de 25 de dezembro. Na casa de meus pais o Natal era respeitoso, mas pouco religioso. Um almoço festivo, com vinho, frutas secas, coisas da tradição italiana. Quem lhe pôs valores mais duradouros foi Marina. Ela teve a coragem de introduzir nas reuniões noturnas em nossa casa uma breve alusão a Cristo e uma oração coletiva, antes da comilança da ceia natalina. Virou tradição. Escrevi um texto sobre isso – “Natal, apenas”, num tempo em que apenas meu pai já morrera e em que a família se reunia toda, ou quase. O que eu não podia mesmo imaginar era que de repente, não mais que repente, etc., etc.
Até há pouco tempo, a cada ano me cabia a tarefa de revisar com o máximo cuidado os longos textos das novenas de Natal, de autoria do Padre Lu, de Tapiratiba, muito amigo meu. A cada nova novena, ele acertava mais a grafia das palavras, a concordância, o tratamento, além de evitar as misturas entre tu e vós. O texto me chegava ali por julho ou agosto, eu o acertava num mês, mais ou menos, e então o padre o levava à gráfica, para impressão. O mais tardar no começo de novembro, lá vinha ele todo feliz com os livretes novinhos em folha. Alguns tiveram tiragens altas, coisa de trinta mil exemplares, usados em toda a diocese. Então, ele me disse que aquele ano (talvez 2010) seria o último. Estava cansado. Senti a perda de uma prazerosa incumbência. A bem da verdade, eram duas por ano – a do Natal e a da Páscoa. Tudo passa, até a inspiração de padre. O presépio da casa de meus avós paternos tinha cores e odores muito próprios: um semicírculo de bambuzinho limitava a gruta feita com papelão amassado que lembrava pedras toscas; enfeites de cedrinho (é dele o odor mais entranhado na lembrança); caminhos de serragem e areia; verdes campinas e um tenro arrozal de verdade, nascido em brejo de barro sempre umedecido; lagos de cacos de espelho; um burrinho de celuloide marrom, vaquinhas, carneirinhos, patinhos. A manjedoura me parecia desproporcional em tamanho (grande demais), ou as figuras humanas pequenas demais. Dominando tudo, no alto do semicírculo, uma estrela-guia de papelão pintado com purpurina, dois anjos pendurados em barbante e segurando um tipo de faixa imóvel onde mais tarde vim a saber que estava escrito em latim “Glória a Deus nas alturas”. Supremas licenças poéticas, a instalação do monjolo movido por um fiozinho de água corrente trazida nunca se soube de onde, capelinhas, umas casinhas modernas dispostas aqui e ali, para a composição mais realista da paisagem. O burrinho de celuloide fazia o papel quase sempre atribuído à vaquinha de presépio: o pescoço movimentava-se à mínima brisa e dava sempre seu assentimento, eu nunca soube a quê. Quem montava todos os anos esse presépio eram minhas tias Albertina e Antonieta, ambas filhas de Maria, que guardaram pela vida toda a mais profunda religiosidade. Morreram solteironas, bem mais de meio século depois, em São Paulo. Posso ainda vê-las, na minha infância, com fechadíssimos vestidos brancos e larga fita azul trespassando o peito, indo à missa dominical obrigatória ou às solenes rezas dos fins de tarde, no mês de maio. Albertina foi a segunda mãe para um bom número de sobrinhos. A caçula Antonieta envelheceu como solista na igreja de Santa Rita de Cássia, no Pari. Com sua boa e potente voz cantou as Ave-Marias de Schumann e de Gounod em milhares de ocasiões, até em nosso casamento aqui em São José, isso faz tempo à beça. Tempo de Natal convida a isso: desenterrar miudezas da memória, tentar reviver o espírito bom das coisas, recriar climas, invocar a lembrança de pessoas que foram ficando lá atrás, soterradas pelas contingências da vida toda.
23/12/2017 |