Aprofundando a lição

  

Faz quando muito uns seis anos que assisti pela primeira vez ao filme Uma lição de vida, título português meio simplório que deram a Wit, tocante história  interpretada  pela soberba atriz inglesa Emma Thompson.

Em qualquer papel  Emma é ótima, às vezes salva sozinha trabalhos  de textos fracos e companheiros sem inspiração. Mas nesta lição, ela está excepcional, como se interpretasse a realidade de seu cotidiano.

A bem da verdade, preciso dizer que eu também me aperfeiçoei como espectador, porque nestes últimos tempos  senti no fundo da alma o drama de pessoa sofrendo dores na mais alta escala e sendo abatida pelo mesmo inimigo mortal.  Minha mulher, Marina Parisi Lauria, faleceu a 20 de abril de 2009 no Instituto do Câncer do Hospital das Clínicas, em São Paulo.

Wit tem em inglês uma variada gama de significados. Quero crer que alguns deles caibam bem em português: perspicácia, finura, comentário espirituoso, jogo de palavras, disfarce para ocultar os sentimentos mais pungentes.

Não deve ter sido fácil ao autor do texto e ao diretor do filme (originalmente destinado à televisão) construir a complexa personalidade da mulher de quase cinquenta anos, acostumada à vida intelectual intensa, afeita à análise de situações alheias. Capaz, por isso mesmo,  de se debruçar com a maior competência na busca da essência poética de um autor antigo e difícil como o inglês John Donne, do século XVII, criador da angústia imaginativa da morte e da eternidade. Um legítimo cultor do wit, portanto.

Toda a densidade do seu papel está em perceber que o tema morte deixa de ser mera especulação acadêmica e passa a dizer respeito à realidade da professora lúcida, exigente ao extremo, incapaz de colocar a mínima dose de humanidade no seu formal e distante relacionamento com os alunos, que a admiram, mas não têm motivos para amá-la.

A retirada dos órgãos reprodutores, alcançados pelo câncer, foi pouco mais do que incidente passageiro e superável na vida dela. Difícil, mesmo, foi  a comprovação da metástase, a aceitação de um tratamento experimental muito agressivo e a transformação da presunçosa intelectual num caso médico, num número, numa coisa, numa experiência sem a mínima possibilidade de sucesso. Difícil entender em português sua resposta a um questionário, a um dos muitos questionários a que pacientes se submetem. À questão Doctor? – ela responde: Yes, I’m  doctor in philosophy. O perguntador a fuzila com o olhar porque apenas quer saber o nome do médico que cuida dela...

Em que se ocupava seu pensamento nas longas horas de sofrimento e de solidão naquele sofisticado quarto privativo? Na análise mental dos textos poéticos de Donne, o primeiro a tratar a Morte como um ser derrotado, não vitorioso. Que diferenças de sentido ela então encontra numa intonação nova, numa pontuação inesperada, numa pausa impercebida!

E o definhamento? Perda dos cabelos (até das sobrancelhas), o emagrecimento, a impossibilidade de alimentar-se, a pesagem e a medição de seu próprio vômito...

Rara consolação: o jovem médico que assistira a um curso dado por ela no auge da carreira e sabia tudo sobre o seu valor cultural e professoral. Ele passou a ser o elo derradeiro entre os tempos em que todos a admiravam e os duros tempos de agora, tempos de aniquilamento, de humilhações, de não ser...

Calma, não vou ficar narrando a interminável sequência de seus sofrimentos provocados por um tratamento radical e maciço. Quero, o mais rápido possível, introduzir o elemento que verdadeiramente torna este filme um testemunho dos grandes valores da vida – a ação do leite da bondade humana. 

Visita a enferma  uma de suas antigas professoras, octogenária, que dali irá depois ver a bisneta, então comemorando cinco anos de idade. A situação de Emma (não guardei o nome da personagem dela) é desesperadora, com dores que nem a morfina aplaca. A velha mestra oferece-se para ler-lhe um dos textos preferidos de Donne, mas sua oferta é recusada. Então só lhe resta aconchegar-se à doente e narrar-lhe a história do livrinho infantil que dará de presente à bisneta:  A história do coelhinho  que queria fugir de casa. Antes de iniciar a leitura, cumpriu academicamente o ritual: citou o autor, a editora, a edição, a data. O volume deveria ter umas doze páginas, com grandes ilustrações e texto mínimo. Pois dali mesmo a velha senhora tirou conclusões importantíssimas, que talvez nem tivessem chegado aos ouvidos de Emma: em cada lugar para onde o coelhinho dizia que iria fugir, a mãe dele arranjava um modo de ficar por perto. Dedução encantadora da  leitora atenta: ali estava uma bela metáfora do empenho de Deus em ficar sempre perto dos homens. Acabada a leitura, a velha senhora vai se retirar, não sem antes comprovar com alívio que a antiga discípula dorme em paz, serenamente embalada por sua voz quente e carinhosa. À saída, almeja que logo uma revoada de anjos venha buscá-la e a conduza à mansão da paz eterna.

Muito mais por iniciativa da enfermeira-chefe (uma forte e jovial negra), desenvolve-se entre ambas um crescente laço afetivo, só possível quando a doente se despoja de suas defesas de scholar, de intelectual acima de todas as misérias humanas. Em madrugada de muita crise dolorosa, as duas se entendem como duas mulheres que são e desfrutam do inesperado prazer de uns picolés compartilhados... A enfermeira a instrui a respeito de uma decisão inevitável:

-Quer a professora morrer tranquilamente quando se der a grande crise ou quer ser submetida aos esforços de uma equipe encarregada de ressuscitá-la clinicamente quando o coração deixar de bater?

A orientação da enfermeira é clara. Melhor não prolongar inutilmente a vida, servindo apenas como cobaia de mais experimentos científicos. Emma aceita a solução.

Mas o que verdadeiramente sela a amizade e a cumplicidade entre aquelas duas mulheres tão diferentes em tudo foi o incidente da falta de conhecimento vocabular  revelado pela enfermeira, que provocou indizível momento de felicidade no caminho da professora rumo à morte. Ela pergunta à enfermeira  se a injeção que lhe está aplicando tem efeito sonífico e recebe como resposta:

-  Isso eu não sei. Só sei que fará você dormir.

A professora sorri, a enfermeira não entende.  A professora, como não teria feito numa aula sua, explica  que sonífico é o que faz dormir. A enfermeira se surpreende e comenta que nunca soube disso. As duas percebem o abismo cultural que as separa. Mas fazem disso um excepcional motivo para rirem abertamente, para se aproximarem através das riquezas dos sentimentos. Um momento de wit, sem dúvida.

A prova crucial daquela amizade nascida da dor e da angústia se dá quando o jovem médico entra no quarto e faz perguntas rotineiras à paciente. Ela nada responde e ele percebe que já não respira. Aciona um código especial de chamada da equipe de ressuscitação, que chega em instantes.

A enfermeira, fiel à promessa feita, luta com unhas e dentes contra aqueles homenzarrões frios e decididos  a impedir por mais algum tempo a morte inevitável. Expulsa-os do quarto, compõe delicadamente as vestes rasgadas de Emma, coloca-lhe as mãos cruzadas sobre o peito inerte. Enfim, torna decorosa a imagem daquela mulher momentaneamente vencida pela Morte.

 

23/10/2010
emelauria@uol.com.br)

 

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