Escrito na mão

 

Estava-se no auge da excursão de alto luxo e de longa duração: roteiro escolhido no capricho, hotéis de primeira, ônibus executivo muito confortável,  dois motoristas, comissária de bordo, viagens apenas durante o dia, coisas assim.

 

Depois de conhecidos os encantos e os hábitos alemães de Gramado e Canela, a etapa que se cumpria era a parada de dois dias numa daquelas praias de Santa Catarina, cujo único defeito estava na insuportavelmente baixa  temperatura  da água do mar, embora se vivesse o  melhor do verão. Diziam que esse incômodo fenômeno natural se devia a correntes marítimas originárias das geleiras polares.

 

Sendo impraticável o aproveitamento de ondas tão belas, o ainda jovem senhor decidiu  ir sozinho à cidadezinha próxima, em busca de alguma atividade para a família,  enquanto a mulher e os três filhos (dois meninos e uma garotinha) se dispunham a enfrentar a praia, ao menos para tomar sol, conversar.

 

Foi informado na portaria do hotel: a distância que  deveria percorrer a pé seria de uns cinco quilômetros, o que ele achou razoável. Pôs-se a caminho, pensando apenas se na volta alugaria, ou não, um táxi. Dez quilômetros lhe pareceram muito para quem não cultivava com tanta seriedade hábitos de andarilho.

 

A paisagem se mostrava monótona. De um lado o mar calmo; do outro, terrenos arenosos, planos, recobertos por vegetação sem graça. De quando em quando, uma cabana rústica, quase sempre fechada e sem ninguém por perto.

 

De uma dessas, porém, surgiu uma bela figura de mulher, tipo aciganado tanto no moreno da pele quanto na vestimenta e nos muitos adornos de ouro e prata. Fez-lhe um sinal, de início não entendido por ele: propunha-se a ler-lhe a  mão, a falar do passado, do presente, do futuro. Não fosse o todo agradável da mulher,  por certo ele não teria dado maior importância ao convite, mas acabou aproximando-se dela, que logo lhe recitou a tabela de preços da consulta, variáveis de acordo com os itens – negócios, amores, saúde.  Ele informou que desejava ter uma visão de conjunto de revelações e de predições e que lhe pagaria até mais do que o pedido, se achasse algum sentido no que iria ouvir.

 

Grande surpresa para ele o choque da quiromante, assim que lhe tomou da mão direita. Mal podendo disfarçar o estranho da situação, ela lhe disse que não estava disposta a fazer a leitura, porque um súbito mal-estar a atingira.

 

- Que espécie de mal-estar?

 

- Nem posso explicar; só lhe digo que não quero ler sua mão.

 

Aí quem sentiu o choque foi ele. “Por que não?”. E por mais que insistisse, a cigana verdadeira ou falsa se mostrava irredutível. E ele insistindo, insistindo.

 

Ao fim, ela concordou em lhe passar uma resposta breve, sem mais explicações e sem nada querer cobrar.

 

- O que é que você leu na minha mão?

 

- Li que sua vida será muito curta, não chegando sequer a seu próximo aniversário.

 

- Você pode adivinhar a data de meu aniversário?

 

- Não posso, não quero saber, mas é isso que vi e não queria revelar ao senhor, se não fosse tanta sua insistência.

 

- Meu aniversário não está longe... Não acredito em nada que você me disse.

 

- Melhor para o senhor.

 

- Além do mais, nem o gostinho de saber o resultado de sua predição você terá. Moro longe daqui e de qualquer modo não voltarei tão cedo por estes lados...

 

- O senhor é que sabe. Tomara que eu esteja errada. Adeus.

 

Na verdade faltavam uns bons meses para o dia de seu aniversário e ele achou melhor esquecer o incidente. Crendices, superstições, mistificação, exploração da credulidade... Ele encheu-se de argumentos e fez tudo para arquivar o assunto.

 

Voltou à sua cidade, jamais abriu a boca para sua mulher; muito menos para os filhos. Contou o caso, em tom de brincadeira e incredulidade, a um só amigo, discretíssimo. Nunca mais se falaram sobre aquilo.

 

Na véspera do aniversário, depois de noite pouco dormida, passou assim como que por acaso no escritório do confidente único e pareceu-lhe ter notado no olhar e na fala do amigo um quê de ansiedade. Amanheceu o outro dia, ele tenso e inquieto. Recebeu os telefonemas e as mensagens escritas de quem esperava mesmo, os de sempre. Do amigo, nada. O dia se arrastou, anoiteceu, virou sem novidade. Logo depois de meia-noite,  estando em casa, o telefone tocou e você já adivinhou quem o estava chamando – o amigo. Voz clara, jovial, muito satisfeita. Deu-lhe os parabéns, justificando a demora  com uma viagem inesperada. Era mentira, sabiam os dois. Mas  ficaram muito contentes com tudo e marcaram almoço “regado a bom vinho” para dali a poucos dias.

 

Nenhum dos dois tocou no assunto, levados talvez pelo mesmo temor: com certas coisas não se brinca...

 

23/07/2016
emelauria@uol.com.br

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