Do “Tempo & Memória”
CABARET Nunca vi resposta mais simples e convincente à pergunta que até hoje desconcerta o mundo: -- Como é que o povo alemão se deixou dominar tão completamente pelo nazismo? A resposta simples e convincente está em “Cabaret”, um musical que recria a Berlim de 1931, quando entrava em vigor o lema “Aproveite antes que tudo acabe”. De modo muito particular a resposta está na cena em que um louro e belo adolescente, todo nazista, canta num restaurante campestre “O futuro me pertence”. A melodia envolvente, a música de início apenas sugerindo um tema bucólico. Num crescendo eletrizante, música e letra contagiam os circunstantes, culminando em final quase wagneriano, a que ficaram imunes apenas dois velhos talvez surdos, apegados para sempre aos seus canecos de chope.
PRESTES NA PRAIA Parecia-se de verdade com Luís Carlos Prestes quando moço e legal, e era bibliotecário na praia. Sentado logo à entrada de seus domínios, controlava os movimentos dos que vinham, passavam os olhos pelos livros encadernados e acabavam decidindo-se por um jornal. O olhar era perscrutador, não sei se por medo de surripiarem algo das prateleiras (quem ainda se interessa em furtar livros?) ou porque acostumado ao alerta constante das conspirações, dos silêncios consensuais. Decidindo-se algum raro freqüentador pela retirada de um livro, ele se apossava com extremos cuidados da papeleta de registro (por que não considerar o perigo de explosão no inocente envelope?), anotava umas coisas e procurava descobrir, com olhos expertos, as razões de se escolher exatamente aquele volume. Sim, o bibliotecário da praia me dava a entender que acreditava existir uma relação entre o aspecto físico do consulente e o gosto intelectual, entre fisionomia e profissão. De quando em quando abandonava sua atalaia e passava amorosamente (ou apenas cuidadosamente?) as mãos pelas lombadas de toda uma fileira, alinhando-as em rígida disciplina. O bibliotecário da praia tinha alma de bibliófilo: amava os livros por sua beleza extrínseca. Poderá existir profissão mais deprimente do que a de bibliotecário na praia? As pessoas aqui estão para não ser, para esquecer, para fugir. Eu pensava estas coisas, quando ele se aproximou e informou: -- São cinco para as cinco. Fecho às cinco em ponto. Saí e aguardei-o do lado de fora. Ao primeiro grito da sirena, já estava com a porta trancada. Então seu rosto se desanuviou e seus passos ganharam a lepidez de um colegial em recobrada liberdade. Até o dia seguinte sabia-se a salvo dos consulentes que desejam “um bem forte”, que adoram Cronin, eu acham muito difíceis as aventuras de Asterix, que acreditam nas boas intenções de Batman e Robin.
PROBLEMAS INCULTURAIS Foi o criador de Avalovara, Osman Lins, quem não suportou o ínfimo nível dos alunos de um curso oficial de Letras, em faculdade hoje incorporada à UNESP, a terceira universidade estadual paulista. Não suportou o nível e se demitiu da cátedra, não sem antes coligir material que usou no livro Problemas Inculturais Brasileiros. Sem me demitir de nada, cada vez mais me convenço de que as pessoas estão a tal ponto saturadas de informações quase sempre de fundo mercantilista ou apenas inúteis, que elas vão acabar perdendo a capacidade de armazenar coisas antes julgadas fundamentais e por isso mesmo aprendidas cedo e para sempre. Falar e escrever mal não são criações modernas, mas era de se esperar que cada vez mais quem estuda se aprimorasse na forma de expressão. Pensando bem, é provável que até se fale melhor hoje do que há trinta anos. O problema piora quando se trata de escrever. Contudo, a título de consolação, lembremo-nos de que esses crimes de lesa-língua se chamam solecismos, termo que provém de Soles, ilha cujos habitantes falavam tão mal o grego, que nem os próprios gregos os entendiam. Nada novo na face da Terra, portanto.
REFLEXÃO ACERCA DO IRREPETÍVEL Em Minas, além de Belo Horizonte, era sábado à tarde e ventava. Estávamos no alto de um monte, a cidade lá embaixo, inesperada em sua grandeza. Do lado oposto, um campo. Apenas um belo campo dividido por uma cerca de arame farpado, uma árvore em primeiro plano. Era inverno e ventava. Além da cerca, além da árvore, ondulava um capinzal florido de roxo. Depois, o desdobrar de outros campos, de outras montanhas. Guardamos conosco a fotografia do campo delimitado por uma cerca de arame farpado, com uma árvore em primeiro plano, o capinzal inclinado à passagem do vento. Mas certamente não voltaremos àquela paisagem, que captamos em seu exato e efêmero instante. Existiu apenas porque era sábado de inverno e porque estávamos lá.
NÓS, INTRUSOS O pedido veio de longe, por telefone. Que não nos esquecêssemos de ir até lá, dizer uma oração em nome da família. E assim fomos, minha mulher e eu, quando amainava o calor de um dia glorioso de luz. Esperava, confesso, encontrar ali muitas flores, o indício mais perceptível de que se visitam os mortos. Nem uma havia. Talvez por esperarmos encontrar tantas, é que também nós nenhuma levamos. Desculpa que formulo para mim e para os outros: Euclides não é um morto comum; e em certo sentido, nem morto é. O portão de entrada dava a falsa impressão de fechado; estava apenas bem encostado. Minha mulher e eu ficamos um bom tempo frente àquele monumento e àquelas inscrições de tanta eloqüência muda. Não longe dali, num canteiro quase próximo à redoma, vicejavam centenas de lírios amarelos, e uma espécie de espinheiro erguia a sua floração delicada e branca. Apanhamos as flores que quisemos e com elas improvisamos um arranjo na sepultura que guarda o pai e o filho de nomes iguais. Por certo, motivado pelo contraste dos caules verdes e das pétalas amarelas dos lírios, aflorou-me à memória o episódio da dracena, mas não prosperou a recordação porque havia por ali tanta beleza e tanta paz, que melhor era fixar nas retinas e nos corações aquele instante incomum.
Por um brevíssimo segundo, pareceu-me compreender a solidão que se há de imaginar tanto no pai quanto no filho, isolados recentes naquele ermo do rio Pardo. Foi apenas um breve momento, porque não poderia haver solidão que se lamentasse em meio àquela serenidade criada pela quase-ausência humana e pela exuberância da natureza. Árvores ostentando a vitalidade da primavera, flores explodindo em cores e formas, a luz crua de um céu sem nuvens, o murmúrio do rio, uma canoa passando lenta e discreta, dois pescadores imóveis – um no pilar da ponte, outro mal divisado no capinzal alto da margem oposta. E, integrando à maravilha aquela paisagem captada num momento de exceção, a dignidade do monumento, a nitidez do gramado, a felicidade daquelas mangueiras antiqüíssimas de beira-rio que, perdendo algo do tamanho porque aterradas, ganharam posturas de guardiãs e gestos de protetoras. Tudo dominando, um calor que garantia a perenidade da Vida, na infinidade de suas variações. Foi muito lentamente que o sol perdeu a intensidade do brilho, enquanto promessas de sombras surgiam na massa das árvores, da cabana, do aterro, da silhueta da ponte. O espelho d’água recebeu tons inesperados de abandono. A mensagem de saudade, fixada letra a letra na rudeza do concreto, assumiu a plenitude de seu significado. Não poderiam ter sido outras as palavras escolhidas, especialmente naquele precário instante em que, frente a tanta beleza, a tanta harmonia, nossas presenças naquele crepúsculo nada mais eram do que injustificada intrusão na justeza das coisas.
23/06/2007 |