Do Calidoscópio

É provável que algumas pessoas ainda  se lembrem: durante  anos, mantive na  Gazeta  do Rio Pardo uma coluna denominada “Calidoscópio”.

O que me pareceu menos efêmero naquelas publicações eu selecionei para meu primeiro livro – Tempo & Memória, de 1986.

Passados tantos anos, minha querida colega de magistério no “Euclides da Cunha”, Maria José Campos Frigo, revelou-me  que  tinha guardados todos aqueles meus artigos.

Achei delicadíssimo o gesto dela e ainda mais, a colocação daquele material à minha disposição. 

Então aqui estou com o maço de recortes muito bem conservados, alguns deles com anotações da filha Ana Teresa, com letra de fazer inveja pela regularidade e clareza.

Ler aqueles escritos de tão distantes épocas tem para mim o mesmo sabor de ver um álbum de  velhas fotografias, redescoberta até aquela inevitável sensação de ridículo que sentimos em face de certas fisionomias, de certas roupas, de certas poses. No caso das crônicas o ridículo se prende a certas idéias, a certas frases, a certas previsões que não se concretizaram, a certos conceitos hoje indefensáveis.

Detenho-me naqueles textos que não passaram para o livro.

Na crônica inaugural, de 30 de janeiro de 1972, depois de historiar minha anterior passagem pelo jornal, digo que “se doravante as coisas correrem com normalidade, CALIDOSCÓPIO será permanente” e o jornal deverá “observar à risca o original, não se preocupando com o que lhe possa parecer estranho, porque o mundo em geral, e esta culta cidade em particular, andam repletos de inovadores em escritos alheios e próprios”.

A advertência tinha muita razão de ser, porque o original era mandado ao jornal, composto na linotipo, corrigido por alguém de lá mesmo, que não poucas vezes mexia onde não deveria e não mexia onde deveria. Acontecia muito o que depois Fernando Torres e eu denominaríamos acessos de coautoria (assim mesmo, numa só palavra, pela nova ortografia)...

Gasto o restante do espaço inicial teorizando a respeito do sentido do vocábulo crônica, em observação que não perdeu atualidade.

Digo que é no Brasil, para variar, que a palavra crônica passou a designar um gênero de típico desenvolvimento jornalístico que casa à maravilha com nossa índole. Sem exagero, penso na crônica como uma das múltiplas facetas da arte brasileira de dar um jeito Vejamos se não:

1.  Crônica é produção em prosa de tamanho pequeno. (Afinal nem Cooper e seu desgastante método resolveriam o problema  de enfrentar-se com fôlego, sempre, as grandezas e pequenezes da vida.)

2.  Publicação típica de jornal ou revista. (Com o preço das edições e a certeza de encalhes, somos seguramente o país com a maior produção literária inédita em livro.)

3. De natureza literária, se bem que tendendo para o ensaio informal, para o estilo coloquial, para o uso de vocábulos e  expressões da língua falada. (No meio de tantos botocudos que pontificam na imprensa, na televisão, na rua, nas escolas até, conseguir alguém escrever na amena forma culta e distensa –  eis a glória.)

4.  Assuntos  provocados pela observação do cotidiano, refletidos num temperamento artístico. (É o melhor  do cronista: pode escrever sobre tudo e sobre nada; até sobre  falta de assunto.)

5.  Temática oscilando entre  o dilema do transcendente e do circunstante. (Bem, aí a maré não está para sardinha. Penetrar a temática do transcendente exige um Rubem Braga, um Carlos Drummond, um Fernando Sabino, um Paulo Mendes Campos; estes mesmos, às vezes, não transcendem fácil, apenas circunstanciam quando desejavam transcender...)

6. Expressão, não raro, do mundo interior sobrepondo-se à análise objetiva dos fatos observados. ( Outra deliciosa prerrogativa de quem se faz passar por cronista: pode sacar suas mentiras de leve, manipular a seu bel-prazer as estatísticas, já de si manipuladíssimas, fazer prevalecer sua esfarrapada visão de mundo simplesmente porque sim... Ao cronista  jamais cabe o ônus da prova.)

A segunda rodada do Calidoscópio  tratou de assunto delicado e sempre atual: o Corinthians e suas eternas descidas ao inferno e subidas ao paraíso. Não vou entrar neste tema sempre apaixonante.

No terceiro movimento, o Calidoscópio se autoexplica: “Calidoscópio ( ou com menos correção caleidoscópio) é daquelas  palavras que nada dizem pelo jeitão... No velho Dicionário de Cândido de Figueiredo (1913), é instrumento de Física, formado por pequenos espelhos inclinados, e que, a cada movimento, apresenta combinações variadas e agradáveis... Do grego kalos eidos skopein”.

É isso, um tubo que girado lentamente propicia ao observador imagens sempre diferentes e bonitas. O espírito analítico da língua portuguesa impede que se fundam numa só as palavras vejo formas bonitas, mas o sintetismo do grego formou  calidoscópio para significar, como significa, vejo formas bonitas...

Ao todo são setenta e seis  movimentos do Calidoscópio com este título. O último é de 28 de julho de 1974. Depois disso, minha colaboração na Gazeta deixou de ter denominação fixa, variando a cada artigo. Maria José Campos Frigo e a filha Ana Teresa guardaram alguns deles, sendo o mais recente (ou menos antigo) de 13 de fevereiro de 1977.

O sétimo arranjo do Calidoscópio (12 de março de 1972) trata de assunto  que nos dias de hoje volta ao noticiário: a reforma ortográfica. Comento que aquelas modificações, contidas na Lei 5.765, de 18 de dezembro de 1971, foram muito tímidas, apenas eliminando o trema de onde nunca fora usado (saüdade, na poesia,  por exemplo), cortando os acentos chamados secundários em palavras como nìtidamente, sòzinho, cortêsmente, pèzudo) e eliminando o acento diferencial em milhares de palavras, como êle, êste, aquêle, podêres, govêrno... Até que corajosas, perto da reforma  abrigada legalmente no Brasil a 29 de setembro de 2008, causadora de tanta celeuma internacional.

Comento que o mundo atual está exigindo outras modificações e dou razão ao velho Monteiro Lobato. Acostumado com o inglês, que sem acentos é a principal língua do mundo, ele, pessoalmente, marcava muito poucas palavras, apenas as essenciais, como  é, está, e não escondia sua ojeriza pelo texto que tivesse muito acentuado. Se lesse uma página  e visse alguma palavra com trema, não tinha dúvida: interrompia a leitura, simplesmente.

Trato de tudo nestes giros do Calidoscópio. Até de política. Até de como fiquei muito satisfeito  com os quinhentos e treze votos que obtive como candidato a vereador na eleição de 1972. Quinhentos e treze votos sem ter gasto um tostão, sem ter dado nem bola de futebol, nem camiseta, nem tapinhas nas costas. Para não dizer que nada tenha gasto, enviei algumas centenas de aerogramas a pessoas conhecidas, avisando-as de que era candidato...

De vez em quando, comentarei ainda coisas do rico material contido nos setenta e seis movimentos do Calidoscópio. Hoje encontro ali muita explicação de como eu pensava e agia, de como nutria profundas  esperanças no futuro de nossa cidade. O tempo confirmou algumas dessas esperanças e frustrou muitas, muitíssimas delas.

 

23/05/2009

(emelauria@uol.com.br)

 

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