Um povo noveleiro

Não confundir com José Alencar!   José de Alencar, antes de Machado de Assis a unanimidade brasileira em matéria de romance, conta num de seus livros menos lidos – Como e por que sou romancista (1893) que na distante Mecejana, Ceará, sua família se reunia constantemente para ouvir a leitura do infalível folhetim, a parte dos jornais que interessava a todos.

Ali, no silêncio da sala, à luz frouxa de uma lamparina, alguém de boa voz e capacidade de dramáticas inflexões repassava para os parentes, agregados e mucamas as imutáveis peripécias amorosas vividas por um casal cujo amor era contrariado por interesses de terceiros. Às vezes, a emoção era tanta, que um daqueles assistentes chegava a interromper a chorosa narrativa e lançava imprecações ao vilão desalmado ou ao duro pai de alguma donzela tomada pelo mais profundo sentimento da paixão.

Assim, não é de hoje que a alma brasileira encontra nos temas novelescos a rematada expressão de seus anseios.

Não se falando do teatro e do cinema, fontes alternativas dos desabafos amorosos de nosso povo, que exigem, porém, a locomoção das pessoas para um ambiente adequado, fica fácil entender a atração exercida no País todo pelas novelas de rádio e de televisão.

Alguém há de lembrar-se comigo do efeito catalisador causado em todos os níveis populacionais pelas radionovelas, atrações máximas da Nacional do Rio de Janeiro ou da Tupi de São Paulo. O direito de nascer, dramalhão de autor cubano, arrastou-se por mais de ano, conservando firme e fiel seu público cativo. Em busca da felicidade, de Oduvaldo Viana, permaneceu em minha memória auditiva por causa de seu tema musical, o prelúdio da ópera  La traviata, de Verdi. Não há uma vez  que eu ouça a bela melodia sem me lembrar da atenção de minha mãe às venturas e desventuras dos heróis da  complicadíssima trama.

Como a leitura de um livro, a audiência de uma novela no rádio exigia a total adesão das pessoas, que, contando apenas com a voz dos radioatores e com os recursos limitados da sonoplastia (como o tropel dos cavalos reproduzido cadenciadamente por alguém que manipulava  meias cascas secas de coco-da-baía),  precisavam completar com a imaginação o contexto em que as ações se passavam. Só se assistia a novelas prestando-se a máxima atenção e contando-se com o silêncio dos circunstantes. A televisão, com todos os seus recursos audiovisuais, permite que alguém acompanhe uma novela e faça concomitantemente outra coisa, sem perder o fio da meada. Nos enredos mais arrastados, uma pessoa que não assista aos capítulos da semana inteira pode, com uma ou duas perguntas, pôr-se a par do que vem acontecendo.

Houve resistências e críticas dos homens àquela quase escravização das mulheres às novelas de rádio, responsáveis por muita panela de feijão queimado. Bem me lembro de um fato que registro como prova de mudança de hábitos e quebra de preconceitos machistas. Lá por 1945-46 (puxa, estou voltando para um ano da primeira metade do século passado!), a então novinha ZYD-6, Rádio Difusora São José do Rio Pardo, falando em 1.560 quilociclos para todo o leste paulista e sul de Minas, apresentava, sob o alto patrocínio do Biotônico Fontoura, radionovelas gravadas que faziam sucesso hoje inimaginável. Se você fosse caminhando pela Rua Silva Jardim, por exemplo, no horário de uma delas, podia acompanhar o que se passava, porque os rádios de todas as casas estavam sintonizados no mesmo programa! Aí veio a novidade: do meio-dia à uma hora da tarde, a Rádio passou a ter um novo tipo de público predominantemente masculino: os que iam assistir à novela em volta do coreto do jardim da Praça XV de Novembro, onde se instalara potente alto-falante...

Com o passar dos anos, telespectadores mais exigentes já não se contentavam com produtos do tipo água-com-açúcar ou mocinho-e-bandido. A Rede Globo então inovou. E temas polêmicos de mais substância fizeram das suas telenovelas uma espécie de fórum  preliminar de debates dos grandes temas de interesse nacional, contando com  certa maturidade do público.

Tudo começou com Irmãos Coragem, de Janete Clair, de 1970. Era a luta dos irmãos João e Jerônimo Coragem (Tarcísio Meira e Cláudio Cavalcânti) contra abusos de poder de latifundiários corruptos. Os censores do Departamento de Censura dos Divertimentos Públicos, de Ministério da Justiça,  caíram de pau nas cenas de violência  e de palavras tidas por  impróprias, como aporrinhar e arrombar.  Considerada de forte teor político, a novela foi classificada como inadequada a menores de dezesseis anos, por “suas imagens negativas”, “por diálogos de baixa cultura”, e exilada para depois das vinte e duas horas.

O marido de Janete Clair, Dias Gomes, na primeira novela em cores, O bem-amado (1973), ao invés de celebrar o “milagre econômico” daqueles tempos, escreveu a história de um político corrupto, Odorico Paraguaçu (Paulo Gracindo), que enganava um sofrido povo nordestino. A Censura não perdoou: “As situações afloradas, por seu duplo sentido, podem ser claramente interpretadas como alusivas à conjuntura nacional”. Cortou, ainda no roteiro, uma cena em que o personagem Zeca Diabo (Lima Duarte) apareceria sofrendo as dores causadas por um bicho-de-pé. Justificativa do corte: a falta de saneamento básico não combinava com um país que se desenvolvia rapidamente... O problema causado pelo bicho-de-pé de Zeca foi substituído por uma gripe! Por causa do comportamento de Odorico Paraguaçu –“ um velho conquistador e cheio de amantes” – e de sua filha Telma (Sandra Bréa) –“ moça libertina e adepta do amor livre” --, a novela foi classificada como desaconselhável para um público menor de dezesseis anos e só  exibível a partir das vinte e duas horas. (E dizer-se que tempos depois Sandra Bréa morreria de AIDS...)

Escalada, Vale tudo, Pecado capital  também levaram tesouradas do tal DCDP, que, mesmo sem perceber toda a profundidade  crítica embutida em Roque Santeiro, ainda a deixou na geladeira por dez anos. Pronta em 1975, A fabulosa história de Roque Santeiro e sua viúva, a que era sem nunca ter sido, foi classificada como “história de hipocrisia clerical, na qual uma cidade vive a explorar o misticismo das pessoas”.

Seu autor, o mesmo Dias Gomes, a baseara numa peça teatral sua, O berço do herói, proibida  desde 1965.

Roque Santeiro foi liberada em nova versão, com cortes, em 1985. As tesouradas já não se dirigiam tanto ao seu teor político, mas a assuntos relacionados aos “bons costumes”. O personagem João Ligeiro (Maurício Mattar), ainda que discretamente, demonstrava tendências homossexuais. Aguinaldo Silva, que escrevera boa parte dos capítulos então levados ao ar, só teve uma saída: matar o personagem – o que não estava previsto. (*)

Imaginem se algum censor se tivesse dado conta de que a fonte primeira de Roque Santeiro estava em Os sertões, no cabo Roque, cuja lenda abalou comovedoramente a alma popular. Um soldado humilde (...) ordenança de  Moreira César, quando se desbaratara a tropa, e o cadáver daquele ficara em abandono à margem do caminho, o lutador leal permanecera  a seu lado, guardando a relíquia veneranda abandonada por um exército. De joelhos, junto ao corpo do comandante, batera-se até ao último cartucho, tombando, afinal, sacrificando-se por um morto...

E a cena maravilhosa, fortemente colorida pela imaginação popular, fez-se quase uma compensação à enormidade do revés. Abriram-se subscrições patrióticas; planearam-se homenagens cívicas e solenes; e, num coro triunfal de artigos vibrantes e odes ferventes, o soldado obscuro transcendia à história quando – vítima da desgraça de não ter morrido – trocando a imortalidade pela vida, apareceu com os últimos retardatários supérstites, em Queimadas.

( Na edição Aguilar de 1966, p. 330/331 do volume II.)

Depois disso tudo, foi o que se viu. Não houve assunto vedado. Falou-se e discutiu-se sobre tudo. Pode-se até desancar o regime militar, como dizem estar acontecendo agora com uma novela do SBT, sim, do SBT, antes tão comportadinho em relação aos poderosos de plantão, principalmente se fardados.

 

(*) Dados sobre as novelas colhidos no livro Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988, de Beatriz Kushnir, Boitempo Editorial, 2004.

 

23/04/2011
emelauria@uol.com.br)

 

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