Os
enjoados
Lecionar
em período
noturno de
cursos
universitários
vira
sempre
oportunidade de
ouro na
ampliação do
conhecimento
humano.
Para
começar, numa
sala
bem freqüentada há sessenta, setenta
alunos
que podem ao
final do
ano
nem
saber o
nome da
maioria dos
colegas e
também de
alguns de
seus
professores: vêm de
dez
ou
mais
cidades, chegam
quando
muito
em
cima da
hora, se
não
depois da
hora; saem
apressados
logo
depois da
hora, se
não
antes da
hora. O
convívio
com os
colegas do
próprio
curso é
mínimo. Dos
outros
cursos,
então... E
assim se perde
um dos
pilares da
formação cultural diversificada,
objetivo
primordial das
universidades.
Ao
lado de
jovens
em
flor, no
auge da
beleza primaveril, sentam-se
outros
não
tão
jovens,
não
tão aquinhoados. Sentam-se
também os
muito cansados de todas as
idades,
que
antes de
vir
para a
escola
já enfrentaram todas as
durezas do
dia,
quando
menos
oito
horas,
fora a
viagem,
alguns trabalhando o
tempo
todo de
pé,
mesmo
que
não tenham a
quem
servir.
Balconistas e vendedoras se queixam
muito disso, da
insensibilidade dos
patrões
que as querem o
tempo
todo faceiras, risonhas, dispostas
como se tivessem
saído de uma
banheira
repleta de
leite de
égua –
muito
bom
para a
pele, pensa-se
desde os
tempos de Cleópatra. E
não
lhes dão
nem
cadeira
para
um
breve
repouso.
Ao
lado das moças descansadas, de
bem
com a
vida, descobrindo o
amor e
suas
tramas, estão aquelas outras, casadas,
solteiras
ou separadas,
mas
suficientemente escaldadas na
dura
lição:
tudo cansa,
tudo enjoa.
Essa desanimadora
verdade,
que
só deveria
ser do
conhecimento de
velhos
pais, de velhas
mães, de calejados avós, está chegando
cada
vez
mais
cedo a
legiões de
pessoas
que precisam
desdobrar o
tempo (algumas
com
tarefas
até
nos
sábados e
domingos),
fazer
malabarismos
com o
dinheiro
curto,
com os
embates das
relações
interpessoais,
com as
incertezas da
educação dos
filhos.
Quando vejo nas
minhas
aulas
homens e
mulheres de
fisionomias fatigadas,
pouco interessados nas
inevitáveis
abstrações
que
são nossas
explanações discursivas, fico pensando na
vontade que
eles devem
ter de
tornar
pública uma
face
triste do
mundo
real:
--
Você
aí, coleguinha de
generosa
beleza;
você
aí,
rapagão
que
nem
precisa
trabalhar
para
estudar:
meus
caros,
vão
com
menos
sede ao
pote
porque
tudo enjoa.
Longe dos
embalos das sextas e dos
sábados à
noite, afastados dos
programas das
tardes de
domingo e das
delícias de
qualquer
dia de
gloriosa
juventude,
eles devem
ansiar
por
ficar
em
casa,
sozinhos,
em
silêncio,
sem TV,
sem
som,
descalços e
com os
pés
para
cima.
Já ouviram
sons
demais – dos
abusados
carros de
propaganda, das
músicas
bregas, das reclamações dos fregueses, do
vozerio
incontrolável dos
alunos
cada
vez
mais indóceis.
Isso se
não forem
também participantes das
discórdias
familiares – os
filhos exigindo
mais do
pai e da
mãe; a
mulher
braba
com o
marido e
vice-versa; os
irmãos
em
contendas
entre
si, numa
disputa
que se sabe
terrível:
dois do
mesmo
sangue
que se rivalizam e se enfrentam podem
ser
mais encarniçados
que
dois
inimigos
jurados de
morte.
Essas
pessoas,
tão exigidas
pela
vida, estão enjoadas de
qualquer
som, de
qualquer
música. A
barulheira do
despertador incomoda,
assim
como o
latido
noturno do
cachorro
boêmio.
Mesmo o
canto de
início
tão apreciado do
sabiá
madrugador
quando prenuncia a
primavera.
Tudo enjoa,
até As
Quatro
Estações, de Vivaldi.
Alguns andam
tão estressados de
trabalhos,
preocupações de
toda
ordem,
dificuldades
financeiras,
que
já
não podem
aspirar
por
som
mais
notável do
que o do
silêncio.
Nem
só de
sons os desgastados enjoam.
Também das
comidas. Há
quanto
tempo
não dizem
coisas
simples
como “que
comida
deliciosa”,
porque
não comem
com
vagares,
porque
nada saboreiam,
porque vivem
sob o
império do
sanduíche, do
quebra-galho do
almoço de
meia
hora, do
lanche
nos
intervalos de
aulas.
Sua
referência
gastronômica
não vai
muito
além do salgadinho
exposto
nos ensebados
mostruários de
vidro de
qualquer
cantina.
Devem
também
estar enjoados de
cheiros. E,
Deus do
céu,
como as
coisas cheiram! Os
livros cheiram, as
ruas cheiram, os
ônibus
escolares cheiram
muito. As próprias
casas
não podem
ficar
por
algum
tempo trancadas
porque inevitavelmente
em
poucos
dias ganham
um
enjoativo
cheiro de...
casas trancadas!
Tenho
visto,
assim, tantas
pessoas
que
me dão a
clara
idéia de estarem enjoadas de
tudo, de
todos
mesmo.
Até de moças e
rapazes
invejosamente
bonitos.
Até
mesmo de
Ana Paula Arósio –
por
quem
um
aparentemente
jovem
amigo
meu nutre o dificílimo
sonho de
lhe
lascar
um
punhado de
beijos nas magníficas
sobrancelhas negro-azuladas,
cada
vez
que
ela aparece na telinha
com a
doce
tarefa de
explicar das
economias embutidas no
discar o
código 21.
Escrevo estas
coisas todas
com uma
ponta de
enjôo
próprio, na
segunda-feira
depois das
dez da
noite,
com a
vantagem de
poder superá-lo
com
maior
ou
menor
facilidade.
Afinal, estou
longe da
fase
mais
produtiva e
trabalhosa da
vida. Posso e devo
curtir
com
melhor
estado de
ânimo
tantos
sons
amáveis,
tantos
odores de
total
agrado.
Penso,
isto
sim, nas
tristes
caras
que vejo na
sala de
aula,
principalmente
depois desta
hora
em
que escrevo –
dez da
noite --,
para
esses estressados o
limite
extremo das possibilidades de aprenderem
qualquer
coisa.
23/04/2005
(emelauria@uol.com.br)
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