Um pouco de latinório

 
Pôr do sol.

Uma pessoa, que se identifica, mas cuja fisionomia não me acorre, diz ter sido minha aluna de latim e apresenta por telefone uma questão de nenhum interesse geral, mas cabível no quadro de curiosidades que a eleição do Papa despertou no mundo todo.

Começa ela:

— Francisco em latim se diz Franciscus, certo?

— Certo, respondo eu.

— Então por que o jornal do Vaticano, Osservatore Romano, publicou em manchete:

 HABEMUS PAPAM FRANCISCUM

 como a televisão mostrou claramente?

 E então pensei com meus zíperes como iria responder com acerto e brevidade à questão que envolve certo conhecimento do mecanismo de uma língua praticamente em desuso:

— Você estudou um pouco de latim comigo, não é?

— Sim, fiz o curso de Letras na UNIP há quase dez anos.

— Hã... Lembra-se das declinações?

— Ah, sim. Era uma dificuldade guardar aquelas coisas todas. Sei que eram cinco.

— Pois é. Espero que você se lembre ao menos disso: o sujeito de uma frase vai para o caso...

— Isso eu lembro: nominativo!!!

— É isso. E o objeto direto vai para o...

— Dativo?

— Não...

— Acusativo, lembrei agora.

— Certo. Então preste atenção: na manchete do jornal vaticano está escrito que temos um papa, que escolheu para si o inesperado nome de Francisco. O sujeito da oração está implícito no verbo habemus, temos. Nós temos um papa. Papam, objeto direto, está no ...

— Acusativo.

— Isso mesmo. Mas a notícia já dá também o nome escolhido por ele, Francisco. Ou seja, o nome Francisco está revelando algo importante sobre o papa. Agora uma pergunta que talvez você não saiba responder: como é que se chama, em gramática, um nome que explica outro?

— Como assim?

— Se eu digo a você: “Comprei isso na Loja...”, você me perguntará o nome da loja. Pois esse nome da loja, sendo substantivo, como Bahia, Brasil, será um aposto.

— E daí?

— Daí que o termo Francisco está explicando, esclarecendo algo sobre o novo papa. Francisco é aposto de papa. Como papam está no acusativo, seu aposto Franciscum também está no acusativo, ou seja, o aposto segue o seu fundamental em gênero (masculino), número (singular) e caso (acusativo), como se fosse um adjetivo concordando com um substantivo.  Entendeu?

— Mais ou menos...

— Xiiiiiiiii, quando alguém diz que entendeu mais ou menos , significa que não captou bulhufas...

— Não, não é bem assim. Entendi que, dependendo da função exercida, em latim as palavras mudam de terminação...

— É isso, elas são declináveis. Se eu quero dizer em latim “O Papa Francisco é argentino”, a forma será Papa (nominativo, sujeito) Franciscus (nominativo, aposto) argentinus est.

Ah, bom. Muito obrigada. Boa noite. Desculpe o incômodo.

Fiquei pensando se ela entendera mesmo a explicação, ou teria preferido que eu dissesse que não sabia, ou que o Osservatore tinha errado, ou que deixasse aquilo pra lá, vai-se adivinhar. Passou-me também que no outro milênio o mestre Laércio Barbosa, no “Euclides da Cunha”, tentava pôr essas coisas nas cabeças de meninos e meninas de doze, treze anos. Em alguns, raros, ele conseguiu mais do que isso. Despertou-lhes o gosto pelos estudos clássicos. É o caso, entre tantos, de Ana Francisca, Marleine, Celinha, Manoel Roberto, Lando, Valdir, Molina, Marilena, bons latinistas e por isso mesmo muito competentes  professores de Português.

Aproveitando a deixa: quando uma pessoa pensa igualzinho a outra,  não deve dizer que concorda com ela em gênero, número e grau, como apregoam  de boca cheia por aí. Melhor será dizer que concorda em gênero e número. Já está de bom tamanho.

Concordar em grau... Ora, vejam só.

  • Assim se declina Franciscus, nos outros casos:
    Francisce – ó Francisco, vocativo
    Francisci – de Francisco, genitivo
    Francisco – a, para Francisco – dativo
    Francisco – por, com Francisco – ablativo.

*

Não deixa de ser chocante a superficialidade de conhecimentos de tanta gente do mundo da comunicação. Uma correspondente da TV Globo em Buenos Aires teima em  pronunciar mal o sobrenome do Papa: escreve-se Bergoglio e se deve proferir Bergólio.  No grupo GL, o G não se pronuncia. Aqui entre nós temos sobrenomes de famílias de origem italiana: Agliussi, Sernaglia, Fogliarini, geralmente bem proferidos, como se o g não existisse. A grafia Folharini é mau aportuguesamento, culpa talvez de alguém do cartório do registro civil.

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Outra batatada erudita: jornalista que colaborou no suplemento especial do Estadão sobre a eleição papal nem ficou vermelha ao escrever sobre a renda per capta da Argentina. Qualquer estudante de ensino médio já leu sobre renda per capita, ou seja,  quanto, em dada população, é a média de  ganho  por cabeça. Em latim, cabeça se diz caput, com genitivo capitis. A forma capita é de acusativo plural. Têm origem em caput, capitis as palavras portuguesas capital, capítulo, decapitar, entre tantas, sempre com o tal “i“ que a jornalista engoliu.

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Antes do início do conclave, um sujeito gritou a plenos pulmões na Capela Sistina: EXTRA OMNES, ou seja, para fora todos.  Só os cardeais votantes puderam permanecer.

Omnes , com nominativo singular  omnis,  deu em português, pelo dativo plural,  ônibus (antes escrito ômnibus), veiculo coletivo, para todos. O inglês adotou só o fim do termo (bus), com o mesmo sentido. Daí bus stop, parada de ônibus.

 Diga-se a bem da verdade que o inglês aproveita muito bem os termos latinos, modernizando-lhes o sentido. É o caso de delete, usadíssimo no computador. É a forma imperativa (vós) do verbo delēre, destruir, apagar. Em português há o verbo delir, defectivo e de pouco uso, e o adjetivo indelével, que não se apaga.

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Aquela bênção proferida pelo Papa à multidão que se aglomerava na Praça de São Pedro, logo após sua eleição, chama-se urbi et orbi, ou seja, para a cidade e para o mundo.

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Por causa de São Francisco de Assis e sua dedicação aos pobres, franciscano se emprega também como sinônimo de humilde, despojado. Pobreza franciscana... Será que um jesuíta terá condições e tempo de fazê-la presente na Cúria Romana, em substituição à exagerada pompa, a luxos mais próprios de cortes de imperadores, reis e empresários russos?

E aí está: um papa jesuíta, discípulo de Santo Inácio de Loiola, que fundou a ordem lá no século XVI para fazer frente ao inimigo de então: a Reforma protestante.

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Francisco, nome de origem germânica, quer dizer lança de guerra.  Guerra a quê? Por certo à burocracia, à luxúria, à indiferença, à transformação da Igreja em ONG piedosa, como o novo Papa com rara felicidade diagnosticou na sua primeira homilia na basílica de Santa Maria Maior. Terá de usar com certeza o franquisque, pesada lança dos godos, como descreveu Alexandre Herculano em Eurico, o presbítero.

 

23/03/2013
emelauria@uol.com.br

 

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