Desenterrando defuntos

 Leopoldina, Pedro, Amélia.

 

Não é todo dia que se tem a feliz oportunidade de usar, sem metáfora, a expressão que tomo por título. Se, figuradamente, desenterrar defunto  significa  trazer à tona assunto velho ou falar de pessoas que há muito se foram, aqui e agora, não.

Desenterrar defunto vai significar tirar do sossego merecido corpos de pessoas que partiram desta para melhor, como se espera.

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O fato é que a historiadora e arqueóloga  brasileira Valdirene do Carmo Ambiel, moradora do histórico bairro paulista do Ipiranga, onde se consumou a independência política do Brasil  em  7 de setembro de 1822, enfrentou por três anos a burocracia, sabatinas minuciosas da família imperial, e, aliada  ao esforço e ao convencimento de quase duas dezenas de especialistas, chegou aonde queria: poder desenterrar três ilustres defuntos - o imperador Pedro I e suas mulheres Dona Leopoldina e Dona Amélia, moradores de jazigos no  Parque da Independência, aquele próximo ao Museu Paulista.

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Para quem esqueceu, Pedro I (1798 - 1834), proferidor do grito do Ipiranga, imperador do Brasil entre 1822 e 1831, abdicou do trono brasileiro em favor do filho menor, também Pedro; foi para Portugal enxotar do trono de lá o irmão Miguel e fazer-se ele próprio rei de Portugal, com o título de Pedro IV. Sim, porque o Pedro I de lá era aquele outro príncipe que, séculos antes, se metera com a lindíssima empregada Inês de Castro e, vingadoramente, coroou-a rainha de Portugal — aquela mísera e mesquinha, que depois de ser morta, foi rainha, no feliz dizer de Luís Vaz de Camões, poeta português  muito admirado no mundo todo, bem  menos por estas nossas bandas.

Sujeito meio aloucado e dado a muitas aventuras esse nosso Pedro I (afinal era filho de Carlota Joaquina, princesa espanhola boca-suja como poucas e casada com D. João VI). Farreou o quanto pôde, mas foi guardado para a história como dono de fisionomia muito mais jovem do que a do filho Pedro II. Basta ver as gravuras de um de outro. O pai farrista é muito mais conservado do que o recatado filho.

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Por  conveniências políticas, o imperador da Áustria Francisco I consentiu no casamento de sua filha Leopoldina com o príncipe Pedro,  herdeiro da coroa do reino unido de Portugal, Algarves e Brasil. Dizem que Leopoldina (aquela que "virou trem", no Samba do crioulo doido, do sarcástico Stanislaw Ponte Preta) foi importante colaboradora da obra do marido na emancipação política do País.  Aqui  chegou em 1817, já casada por procuração, e morreu quando dava à luz seu sétimo filho, em 1826. Teria sido a autora da frase INDEPENDÊNCIA OU MORTE, que entrou em lugar de INDEPENDÊNCIA JÁ, proposta inicial do príncipe Pedro.

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Após a morte de Leopoldina,  D. Pedro I incumbiu o marquês de Barbacena de buscar-lhe na Europa uma segunda esposa. Sua tarefa não foi fácil, e vários fatores complicaram a busca. Em primeiro lugar, Dom Pedro havia estipulado quatro condições para aceitar uma nova consorte: ela deveria ser de bom nascimento, bela, virtuosa e culta. Não eram muitas as princesas disponíveis que satisfizessem todos os requisitos. Além disso, a imagem do imperador na Europa não andava boa, seu envolvimento com a marquesa de Santos  era notório e dificilmente alguma candidata deixaria as cortes europeias para casar-se com quem, além da fama de infiel,  tinha ainda cinco filhos bem pequenos. Para piorar a situação, o antigo sogro de Dom Pedro, o imperador austríaco Francisco I, não tinha o genro em bom conceito e divergia de suas ideias políticas. Aparentemente agiu para boicotar um novo casamento, a fim de garantir que seus netos herdassem o trono brasileiro, se sobrevivessem à infância.

Depois de enfrentar a recusa de oito princesas, o que tornara o embaixador objeto do escárnio nas cortes, Barbacena, em concordância com o imperador, baixou as expectativas e passou a buscar uma noiva apenas "bela e virtuosa". Surgiu enfim Amélia Leuchtenberg como uma boa possibilidade.  Não vinha  de uma linhagem particularmente distinguida por parte de mãe. Seu pai, enteado de Napoleão Bonaparte, em muitos lugares não tinha sua nobreza reconhecida justamente pelo ódio que o ex-imperador francês suscitara em boa parte da Europa. Entretanto,  essa ascendência era seu único "defeito". Muito bela a princesa,  alta, bem proporcionada, com um rosto delicado e cabelos alourados. Dizem que D. Pedro sofreu um delíquio (desmaiou) ao ver de pertinho a nova mulher e por isso criou uma comenda em homenagem à sua beleza - a Ordem da Rosa, para lembrar tanto a cor de vestido que usava ao desembarcar, quanto o rubor de sua face. Romântico, não?

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Bem, mas voltemos ao fulcro da questão, como insistem alguns pedantes.

Em 2012 os restos mortais da imperatriz, bem como os de Dom Pedro I e de sua primeira esposa, Dona Leopoldina, foram exumados pela primeira vez da Cripta Imperial por uma equipe de cientistas liderada pela historiadora e arqueóloga Valdirene do Carmo Ambiel, com especialistas da Faculdade de Medicina da USP. O processo, que dependeu de autorização dos descendentes imperiais,  foi cercado de sigilo, e apenas agora veio a público, primeiro pela internet e na terça-feira passada pelo Estadão.

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Os três defuntíssimos foram levados  ao Hospital das  Clínicas e submetidos a baterias de exames de fazer inveja a qualquer milionário. Doze cientistas, de diversas especialidades, nas três noites em  que Leopoldina,  Pedro e Amélia ali permaneceram internados,  realizaram check-ups, utilizando equipamentos de última geração, que um paciente particular  abonado pode repetir pelo módico precinho de cento e cinquenta mil reais.

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E o que é que se descobriu?

De D. Pedro se comprovou o que já se sabia: levou pelo menos dois terríveis tombos de cavalos, quebrando tantas costelas que até lhe provocaram tuberculose e morte prematura. Ah, também ficaram meio aborrecidos porque dos restos da vestimenta e condecorações dele, não havia nenhuma relacionada com o Brasil. Para quem cuidou de seu enterramento, ali estava Pedro IV de Portugal, e não Pedro I do Brasil.

Para alívio dos atuais membros da família imperial, descobriu-se que não passava de boato histórico a fofoca palaciana de que D. Leopoldina  tinha sido derrubada pelo marido  de uma escada no palácio da Quinta da Boa Vista, no Rio, e fraturado o fêmur. As análises radiológicas agora efetuadas não constataram nenhuma quebradura em seus ossos. Também foram encontrados seus brincos, marcados com a inicial L. Não são de alto valor, mais parecendo bijuteria e batendo com a decantada aversão da imperatriz à ostentação.

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Surpresa mesmo reservou aos xeretas históricos o corpo da imperatriz Amélia, que morreu em Lisboa em 1876, ou seja, depois de quarenta e dois anos de viuvez: ela virou múmia! Isso mesmo, parece agora  uma rainha egípcia, com a pele, órgãos internos e globos oculares intactos. Achou-se  pequena incisão na jugular da imperatriz, por onde se supõe tenham sido injetadas substâncias aromáticas, como cânfora e mirra. Não está das mais agradáveis a figura dela, toda vestida de preto em seu luto eterno. Suas mãos esqueléticas ainda seguram um grande crucifixo, provavelmente de ouro bom.

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O príncipe Bertrand, tetraneto de Pedro I, ficou muito satisfeito com o resultado da pesquisa, que desmente "historiadores malévolos".  Nada de Leopoldina ter morrido por causa de um pontapé de Pedro. Nenhum sinal da influência da sífilis na deterioração dos ossos do imperador. Família muito boa a sua.

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Enfim, entre os mortos salvaram-se todos. O pior ainda está por vir: segundo os especialistas participantes, esse tipo de pesquisa abre caminho para a recriação de fisionomias, do modo de andar e das vozes dos ilustres mortos. Quer dizer, a revista Caras terá material para muitos anos.

Em compensação, se a moda pega, lá se vai a promessa de descanso eterno.

 

23/02/2013
emelauria@uol.com.br

 

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