Saudosismo e memorialismo

 

Um bom amigo, professor universitário, comentando recente artigo meu, escreveu que durante muito tempo evitara, em seus próprios escritos, cair no saudosismo, mas admirava a maneira como eu o abrigava com naturalidade.

Respondi-lhe que minha intenção nunca era ser saudosista, mas memorialista.

Parece que ele aceitou a distinção e eu assumi comigo mesmo a obrigação de  justificar as diferenças que os dois termos comportam.

Entendo como saudosismo uma atitude mental  de caráter permanente que considera as coisas do passado sempre melhores, mais confiáveis, mais frutuosas  do que as do presente.A família de outrora era mais bem constituída, mais sincera e mais duradoura do que a família atual. As pessoas eram melhores, assim como a cidade, a escola, as amizades. Se depender de um saudosista, ele trocará sem titubear todo o progresso e todo o conforto de hoje pela vida simples e rústica de um passado não necessariamente remoto. O saudosismo ressuscita lamparinas, escalda-pés, sanguessugas, carruagens, remédios caseiros, o torrador de café e o fogão de lenha. Não só ressuscita como faz questão de provar a superioridade deles sobre os sucedâneos atuais.

Saudosista é quem vive das glórias familiares passadas, das riquezas que o tempo esgotou, dos bens culturais hoje desvalorizados, da rigidez moral um tanto hipócrita com bem poucos seguidores nos dias que correm. Ou dos impossíveis retornos... Saudosista foi Fernando Pessoa com sua  inabalável fé no sebastianismo em pleno século XX.

Neto de imigrantes, convivi quando criança com pessoas de outras terras, de outros costumes, de outros objetivos. Meus avós, por exemplo. E na esteira de meus avós, meus pais, meus tios e os primos mais velhos que, embora brasileiros, foram criados sob as leis familiares de uma Itália rural, arcaicas e inaplicáveis ao Brasil.

À medida que o tempo passou, relatos esgarçados sobre a vida das pequenas comunidades italianas  foram diminuindo até cessar completamente, sem deixar maiores marcas em ninguém. Fiquei, desse modo, privado de importante fonte do saudosismo – a vida de gerações passadas. A bem dizer, nem vontade de ir à Itália eu nutro, embora, por motivos que não me disseram respeito, eu tenha a cidadania italiana.

Tendo vivido praticamente toda a vida aqui nesta cidade, seria natural que eu guardasse na memória, como guardo,  um sem-número de fatos, acontecimentos, histórias, personagens. Quando me refiro a eles, porém, faço-o com o maior respeito e se possível com apoio documental, mas nunca  achei que a vida de ontem fosse melhor do que a de hoje.

Se há frase que evito sempre é esta – no meu tempo... Considero meu tempo o dia de hoje; minhas preocupações,   os problemas de hoje.

Diferente a minha atitude com relação ao memorialismo, termo, aliás, de boa aceitação na Literatura Brasileira. Memorialismo tem pendor biográfico, por vezes confessional, em que o autor dá conta de sua experiência de vida ou da de outrem. O memorialista pode restringir-se a um dado campo de sua vida (artístico, profissional, experiências da infância e da juventude...) ou até aproximar-se de um texto autobiográfico mais amplo. São ainda formas hábeis do memorialismo os diários, a reflexão ensaística, as crônicas temáticas...

O memorialismo literário brasileiro ganha força na poesia e na prosa romântica.

José de Alencar desvenda aspectos incomuns de sua personalidade em Como e Por Que Sou Romancista, agradável retorno à sua rural e escravocrata vida em Mecejana.

Machado de Assis, mesmo sem ter escrito um livro de memórias, foi o autor oitocentista brasileiro que melhor refletiu sua própria ascensão na hierarquia social do tempo do Império. Além de Memórias Póstumas de Brás Cubas (obra-prima do memorialismo cético, em que o personagem inicia sua narrativa descrevendo a própria morte), Machado  lançou mão dos recursos memorialísticos em texto  não inteiramente ficcional, Memorial de Aires, em que relata cenas e costumes de sua vida doméstica centrada na mulher, Carolina Xavier de Novais Machado de Assis. A personagem feminina do livro – D. Carmo – é a tradução livresca de Carolina. Alguém descobriu que nos originais da obra, não uma só vez, quando deveria aparecer o nome D. Carmo, lá estava escrito D. Carolina... Traições do subconsciente.

Mas o grande memorialista do século XIX foi Joaquim Nabuco, com Minha Formação, livro que imediatamente ganhou o favor público por suas qualidades literárias capazes de reproduzir as paixões de uma época e de uma geração.

Não resisto à idéia de arrolar escritores de peso que prestaram sua homenagem ao memorialismo: Graça Aranha (O Meu Próprio Romance); Paulo Setúbal (Confiteor); Gilberto Freyre (Casa-Grande & Senzala); José Lins do Rego (Meus Verdes Anos), Graciliano Ramos (Infância e principalmente o admirável Memórias do Cárcere, em que  o bravo escritor alagoano tem o altruísmo de falar muito mais dos sofrimentos alheios do que dos seus,  na dura prisão a que foi levado por motivos políticos). Aí  Graciliano atingiu seu melhor momento de narrador das misérias do homem.

Mais modernamente, ninguém  superou Pedro Nava, que em Baú de Ossos deu ao memorialismo um padrão de qualidade que as obras ficcionais contemporâneas a ela não conseguiram atingir. Nela, o escritor mineiro que só tardiamente se dedicou a escrever, pois fora médico por muitos anos, teve a capacidade de reconstituir  ambientes de sua ancestralidade, sem abrir mão da faculdade de preencher ficcionalmente as lacunas do que não pôde reconstituir. Vai-se saber por que se matou numa praça pública.

Nada tenho contra o saudosismo do tipo ultra-romântico de  Casimiro de Abreu:

 

Oh! que saudades que tenho

Da aurora da minha vida,

Da minha infância querida

Que os anos não trazem mais...

 

Nada tenho, mas não pratico, mesmo porque  sou machadiano a ponto de concordar com sua  frase de forte sabor de controvérsia: O menino é o pai do homem...

Sei do apelo emocional contido em se escrever, ainda que objetivamente, sobre o passado da cidade, de seus lugares cordiais que vão desaparecendo, de seus tipos humanos que já não cabem na vida de hoje. Quando escrevemos, embora sem a deliberada intenção de saudosismo, despertamos nos outros claras reminiscências que os levam a escrever, telefonar ou falar sobre pequenos incidentes que a nossa escrita remexeu lá no fundo da memória deles. Então o saudosismo não é de quem escreve, mas de quem teve a lembrança estimulada por uma frase, por uma referência, por uma situação que, se não fosse de novo trazida à tona, se perderia definitivamente no amontoado de eventos perdidos nos desvãos das crônicas familiares.

Foi o que aconteceu, exemplificativamente, numa crônica que escrevi sobre a antiga Rua 13 de Maio, em que ia informando a minha mãe, já quase cega, por onde estávamos passando. Eu relacionei os locais percorridos a seus antigos moradores e ocupantes, para facilitar a problemática localização de uma nonagenária que pouco saía de casa. Pois não é que recebi  uma expressiva quantidade de mensagens complementando, retificando ou acrescentando dados ao meu relato? De um lúdico exercício de lembrar nomes e coisas de um passado remoto que quase nada me dizia, para muitas pessoas abri o que Monteiro Lobato chamava a torneirinha das lágrimas...

 

22/09/2007
(emelauria@uol.com.br)

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