Por muito mais do que uns centavos

 
Chuva e sol.

 

“Não sabemos o que queremos; só sabemos o que não queremos”.  (Do Manifesto Modernista de 1922)

 

Difícil compreender, assim sem mais nem menos, a situação de revolta que começou em São Paulo,  só porque o preço das passagens de ônibus subira de R$3,00 para R$3,20.

O protesto engrossou, a polícia tratou os manifestantes todos como baderneiros, meteu-lhes balas de borracha, jogou-lhes bombas de efeito moral e gás lacrimogêneo, bateu, prendeu.

A manifestação popular, apenas em aparência por causa de um probleminha à toa, ganhou corpo, foi até bem aproveitada por agitadores de verdade, tomou ares de revolta, espalhou-se pelo País todo, foi vista pelo mundo e a cada dia mostra um pouco mais do complexo de causas que lhe dão uma fisionomia própria e de incalculável repercussão social. Era a ponta do iceberg aparecendo.

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A praça é do povo, como o céu é do condor  --  esgoelava a plenos pulmões Castro Alves em favor dos escravos, isso lá por 1868-1870, quando começava a tomar vulto a campanha pela abolição da escravatura no Brasil. A curta vida do baiano bom de   inspiração e de oratória acabou aos 24 anos, em 1871,  portanto bem antes da Lei Áurea.

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Suas belas palavras ainda fazem sentido, com a diferença de que hoje nem é preciso esgoelar, basta entrar nas redes sociais, tramar, combinar, incentivar, que de repente a multidão aflui às ruas, cada pessoa com seu motivo justo e ponderável. Baderneiros são poucos. Muitos são os sofredores, atingidos pelos desgastes da vida e da incúria dos dirigentes.

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No aspecto particular do transporte público nas grandes cidades, o frustrante é que não há soluções à vista: a cada dia os carros particulares entopem mais  as ruas e avenidas, os infelizes usuários dos trens e ônibus superlotados aumentam,  as viagens  se arrastam por horas e horas. Tudo enguiça fácil, tudo se interrompe fácil.  Há casos extremos de quem gaste entre ir e vir quase o mesmo tempo em que se empenha no trabalho. Não há como suportar, principalmente  quando vêm à tona os escabrosos casos de gastança, de orgia com o dinheiro público.

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Quase nenhuma obra pública no Brasil se faz sem suplementação de verba, sem baixa qualidade do material utilizado, sem quanto é que alguém leva nisso. E não é de hoje, é coisa velha, que vara governos, décadas e séculos. O asfalto da estrada que demorou uma eternidade para ficar pronta se desmancha em meses, quando a duração mínima contratual seria de dez anos. As obras contra as secas  ou contra as enchentes se eternizam; viadutos ruem, pontes despencam, prédios trincam, morros derretem. Verbas de educação e de saúde se evaporam. Alguém sempre leva algum nisso.

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O Engenhão, estádio modernoso construído para os Jogos Pan-Americanos do Rio, em 2007, de repente vira sucata quase irrecuperável, com risco de desabar. Voltar a ser usado, só em 2015, a  preço de obra nova.

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Os custos estratosféricos de eventos de grande porte e de ressonância universal abriram os olhos do povão para a ladroagem indisfarçada promovida com dinheiro público: já em pleno andamento, a Copa das Confederações, uma espécie de aperitivo caro da Copa de 2014. Para a FIFA, nada está bom, é preciso seguir com rigor a seus mandamentos, seus cronogramas,  ainda que isso signifique esvaziar o erário, que ao fim acaba sempre arcando com todos os prejuízos decorrentes de má gestão, de má execução, de má fiscalização. A Copa no Brasil custará uns 30 bilhões de reais, mais que a soma das últimas três (Japão/Coreia, Alemanha e África do Sul).

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As imagens dos recentes  incidentes do Brasil correram mundo e contribuíram para a apreciação já pouco favorável de um país que não vem tratando convenientemente seus graves problemas e se vê na triste contingência de perder o trem da História.

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Foi Nélson Rodrigues, o ferino observador da alma e dos costumes nacionais, quem descobriu que o brasileiro detesta ter de suportar, nos estádios de futebol, qualquer coisa que não seja a bola rolando. Vaia até minuto de silêncio – é sua frase-síntese. Falação de político, então!  Foi o que se viu no Estádio Nacional de Brasília, antes do jogo do Brasil contra o Japão. Mal abriu a boca, Dilma, que nada tem de boba, percebeu que o ambiente não lhe era favorável  e reduziu um discurso de talvez três minutos a uma fala de dez segundos, e ainda sob vaias. Joseph Blatter, presidente da FIFA, também levou seus apupos e quis dar indevida lição de moral à assistência, apelando para um difícil fair play. Ele precisa conhecer melhor com quem lida.

Por enquanto, não há como estabelecer  relação direta entre vaias em estádios esportivos e resultados eleitorais a médio prazo. A mesma Dilma  vaiada em Brasília em junho de 2013 pode ser reeleita já no primeiro turno do final de 2014. Isso se ela, seu mentor político, seus marqueteiros perceberem a tempo que muita coisa precisa mudar e ser acertada no curto, curtíssimo prazo, numa espécie de mutirão nacional com melhores resultados do que o PAC.

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Alckmin, que começou analisando os fatos sob desfocada ótica policialesca, acabou percebendo, não sei se eleitoralmente a tempo, que o quadro geral era outro e que as lições históricas, nacionais ou estrangeiras, são sempre no sentido de se   procurar entender o que os jovens desejam dizer, mesmo quando se expressam sem nenhuma clareza. Fundamentalmente, eles querem externar sua indignação difusa contra o sistema vigente e pregar em favor de  outro mundo possível, seja lá o que isso tudo queira dizer. É próprio dos moços o papel de  incendiários. O de  bombeiros cabe aos dirigentes, aos homens de verdadeiro espírito público.

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O fato é que nas principais cidades brasileiras houve e continuará a haver passeatas e manifestações, de maior ou menor vulto. Do aumento das passagens de ônibus e dos gastos nababescos do dinheiro público para a realização de eventos muito lucrativos para a FIFA e para um restrito grupo de privilegiados, bem que se poderá passar para outras focalizações mais amplas e mais ambiciosas. Exemplos: como alertar os políticos sobre suas omissões e privilégios(o Congresso Nacional já foi invadido); como exigir combate para valer contra a corrupção institucionalizada; como  tomar medidas concretas contra a criminalidade que assola o Brasil e faz tremer as bases da estabilidade social. Isso sem se falar no descaso com a educação e com a saúde, com o controle do dragão da inflação, que anda soltando fogo pelas ventas.

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As redes sociais reduziram a quase nada a possibilidade de censura dos meios de comunicação. Com isso, abre-se novo estilo de entendimento social: os até então sem voz  já se  manifestam com força e exigem  melhorias no estado geral do Brasil, hoje mal das pernas em importantes aspectos da vida dignamente organizada: a educação, a saúde, a segurança e o transporte de massas.  Sem cuidados reais nestes itens, não haverá como o povo se mostrar menos intranquilo e menos infeliz.

 

(Texto redigido a 19 de junho, quarta-feira)

 

22/06/2013
emelauria@uol.com.br

 

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