Causa mortis

 
Ilustração de Sérgio Barbosa Pacheco, originalmente publicada
 no Suplemento Literário do "Minas Gerais",
 Belo Horizonte, 31 de janeiro de 1987.
 

- Como não percebi? Como foi que não percebi, meu Deus?

Era a irmã, enquanto passava de leve a mão sobre aquelas mãos secas, brancas, unidas por um rosário.

- Como? Me diga: como foi que eu não percebi?

Tantos cubículos iguais – todos ocupados – numa triste promiscuidade das dores em tantas escalas.

Lá estava ele, paletó quadriculado, camisa inteiramente abotoada, também para não deixar à mostra os sinais no pescoço. Peito e pernas cobertos de flores. Pés sem sapatos, meias novas com um resto de etiqueta colada.

- Como foi que não percebi?

Ora, ora. De que adiantaria perceber? Se não fosse hoje, seria a semana que vem, o mês que vem. Ele se internava cada dia um pouco mais no seu reduto, inalcançável. Mas a irmã não estava à espera de respostas. Agarrou-se à sua pergunta, repetida, repetida, com pequenas variações nas palavras e no tom. Mais que a grande tristeza da perda, o sentimento momentâneo era o de susto, o de peça pregada, o de coisa de mau gosto.

Foi ela quem o encontrara no banheiro. Estranhável aquela demora, apesar do aviso (“Como foi que não percebi, meu Deus?”): além do banho, aparar as unhas, cortar os calos, fazer a barba. Mas três horas?

Meio com raiva subiu a escada que dava para os dois quartos e para o banheiro. Bateu, e nada; porta fechada, só com o trinco. Difícil abrir, ainda mais com a tremedeira, com a obscura certeza que cresceu até virar pânico.

- O que é que está segurando esta porta? – foi um pensamento.

Só chegou a ver aqueles pés descalços, de unhas grandes, balançando, lento, lento. Não teve coragem de erguer mais os olhos. Contaram-lhe: enforcamento, com um fio de luz amarrado ao cabide preso na porta. Desconfortável morte, pensei.

Encarei meu primo –  tão velho, tão magro, tão irreal coberto de cravos. Os lábios esticados deixavam ver a dentadura superior, dando a ilusão de sorriso reprimido. De que poderia rir meu primo? A grossura do pescoço e os olhos quase abertos, como se tivessem pingado neles cera derretida. Uma certeza cresceu em mim, a de que a melhor parte  dele não podia estar ali. Qual a validade de seus atos de bondade e de amor? Qual o destino de suas lembranças e o peso de suas leituras? Qual o sentido de suas reflexões e de suas convicções? Qual o saldo de sua sabedoria, agora que ultrapassava o limite?

Pensei que haveria de ser maior a minha emoção. Velha a nossa amizade. Muitas visitas minhas (dele uma só, há tantos anos); cartas e mais cartas. Aí ele foi se encaramujando, economizando palavras: os longos relatos encolheram; as citações minuciosas perderam a vez; os sinais de leitura desapareceram das cartas, que acabaram bilhetes. Então silêncio, por meses, quebrado num aniversário, no Natal. Mais triste que a surdez, a cachoeira no ouvido, dia e noite. Nem televisão dava para acompanhar.

- Tenho o meu niágara particular, repetia.

Primos e primas. Filhos dos primos e das primas. Netos dos primos e das primas. Os círculos concêntricos das famílias acabam dando em nada. Não é bem a distância que separa, são as afinidades que não se construíram.

Quase hora do enterro.

O padre na encomendação:

- Em suma, queridos irmãos, aceitemos as agruras da vida e não julguemos com rigor as decisões alheias. Confiemos na misericórdia do Pai, fonte da infinita bondade e da completa justiça.

Há um tom levemente burocratizado nas palavras, mas que fazer? Dura tarefa a de proferir com ânimo novo tantas pequenas prédicas de consolação, todos os dias.

Pequena a caminhada, mas difícil chegar-se até ao carneiro simples, apertado entre muitos. Com habilidade profissional, os coveiros acabam manobrando bem o caixão no seu exíguo espaço.

- Alguém quer ver ainda o finado?

Ante o geral silêncio, a parede de tijolos começa a ser refeita. O corpo de meu primo – menos de cinquenta quilos – ingressa na precária paz da sepultura.

Ela fica próxima ao muro todo guarnecido de cacos de garrafas. Não entendo aquela defesa tão hostil, mas a causa está bem à vista: além do muro, há outro cemitério – dos israelitas, com peças de valor. Os cacos protegem as riquezas de além-muro, nestes  duros tempos de desassossego até dos mortos.

Detalhe só mais tarde compreendido: no lado israelita, encostadas ao muro e com aspecto muito simples, umas tantas sepulturas. Explica-me depois o amigo judeu:

- Em jazigos sem adornos e segregados da silenciosa comunidade, os suicidas.

Ainda bem que meu primo não mereceu mais esse triste exílio.

Ainda bem que se aceitou, muito pacificamente até, o seu gesto de sair por conta e risco desta vida que tão poucas alegrias lhe proporcionou. Solteirão e pobre. Surdo e com um zumbido permanente dentro da cabeça, dia e noite.

 (Texto de 1996, inserido no livro Nós, os nossos, alguns intrusos, de 1997)

22/05/2010
emelauria@uol.com.br)

 

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