De bis a bis

 
Casamento de meus pais (30 de abril de 1931).

 

 São poucas as pessoas que podem dizer: conheci sete gerações de minha família. Descobri esse por assim dizer privilégio no dia 14 de março, quando recebi a feliz notícia do nascimento de minha primeira bisneta, Ana Beatriz, filha de Paulo e Ana Luísa. Paulo é o segundo filho de minha primogênita Ana Lúcia e de José Geraldo Darcie.

 Completa-se, assim,  um longo percurso, iniciado com certeza em  meados do século XIX, antes de 1850,  quando devem ter nascido meus bisavós, sobre os quais pouco sei.

Conheci apenas  uma bisavó, de quem  guardo nítida lembrança, tendo ela morrido em 1941, quando eu tinha nove anos de idade. Chamava-se Madalena Mazilli D’Elia e morava na Rua Treze de Maio, numa velha casa situada na calçada oposta à do Centro Cultural Ítalo-Brasileiro, o antigo Fascio Italiano. Era viúva de Domingos D’Elia, falecido em 1933. Os dois estão  no cemitério local, em sepulturas separadas.

Minha bisavó  me surge bem velha na lembrança:  trabalhando, fazendo linguiça, vendida na casa de comércio da família. Era pequena, morena, olhos esverdeados; falava baixinho. Na minha única visão dela, o polegar da mão direita aparece entortado de tanto empurrar para dentro de uma tripa, num tipo de funil, a carne de porco picada em quadradinhos.

Dos bisavós maternos pouco sei. Chamavam-se Carolina e Antonio Bertocco. Apenas que chegaram a vir para o Brasil, mas retornaram à Itália, por não se terem acostumado por aqui. O outro casal de bisavós era Ermenegildo e Elisabeta Carraro. Ermenegildo, nome posteriormente dado a um bisneto seu, com o “h” inicial inexistente em italiano.

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Meu avô paterno,  Antonio Lauria, figura entre os fundadores da Loja Maçônica de  São José do Rio Pardo, em 1894. Negociava com carnes, com melancias, com o que aparecesse. Durante algum tempo, há um século, sua grande família ocupou, como inquilina,  esta casa em que moro desde 1939. Deve ser por essa razão  que naquele ano meu pai a adquiriu e nela viveu até o fim de seus dias.

 Antonio provocava nos filhos sentimentos  contrastantes de respeito, admiração e justa mágoa por ter ele ficado rico duas vezes e pobre três. Tudo por causa do exagerado amor às damas, valetes e reis. Com isso, meu pai, o mais velho,  teve de assumir precocemente duras responsabilidades com a mãe e os irmãos.

Catarina D’Elia Lauria era minha avó paterna e a conheci muito bem. Sei até a casa na Rua José Teodoro em que a família morava quando se mudou para São Paulo, lá por 1938 ou antes. Minha avó estava vestida de preto e tinha um xale às costas. Deu-me de lembrança, à hora da despedida, uma moedinha de trezentos réis, que tinha Carlos Gomes na cara e uma lira na coroa. Guardo dela a gentil imagem e traços fisionômicos que revi em suas filhas e sobrinhas.

Fui diversas vezes à casa deles no bairro do Pari, em São Paulo. Antonio Lauria morreu em dezembro de 1947, depois de levar vida quase vegetativa por anos, como consequência de acidente vascular-cerebral.

A avó Catarina durou mais seis anos. Eu estava lá quando ela faleceu, depois de muito sofrer com um câncer estomacal. Estão sepultados no cemitério do Brás.

 Minha avó materna, Albina Carraro, nasceu em 1868 e morreu em 1930, antes de minha mãe se casar (1931). Internada em hospital de Campinas, sucumbiu a inesperadas complicações. Seu corpo foi trazido para cá  num vagão funerário.  Deve ter sido mulher de  fibra, de fortes opiniões, dispondo de vasto arsenal de provérbios e frases feitas em italiano dialetal, que minha mãe  usou a vida toda e passou a mim e a minha irmã Maria Thereza. Verdadeiros tesouros de experiência secular e de sabedoria do povo do Vêneto.

César Bertocco (1865 – 1950) foi meu avô sobre quem mais escrevi. (Em Tempo & memória: “Meu avô”). Vindo moço da Itália, trabalhou em diversas atividades, teve carroção que transportou pedras para a ereção dos pilares da ponte metálica, mas acabou se estabelecendo como comerciante no Buracão, perto da antiga estrada que levava a São Sebastião da Grama, seguindo pelos lados da Macaúba. Albina e César casaram-se a 16 de novembro de 1889 e tiveram o desprazer, anos depois,  de serem alertados pelo chefe político Tarquínio Cobra Olyntho de que viviam em situação irregular, porque com a proclamação da República, ocorrida um dia antes, o casamento religioso deixara de produzir efeitos civis. Então eles se casaram de novo no cartório competente, tendo sido acompanhados por um batalhão de filhos.

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Meu pai, Domingos Lauria, mais conhecido como Carmo Lauria por causa de uma história familiar que já contei na crônica “Os irmãos Domingos e o presente da madrinha”, viveu entre 1901 e 1989. Está no livro Tratador de palavras, onde se pode ler também  “Um pouco de meu pai”.

Minha mãe, Luiza Bertocco, viveu entre 1909 e 2008. Também já escrevi esparsamente sobre ela. Há interessante material fotográfico no site saojoseonline.com.br, em minha coluna, no dia 7 de junho de 2008, pouco depois de seu falecimento aos noventa e nove anos.

 O casal teve, além de mim, duas filhas: Maria Neusa (1936-1949) e Maria Thereza, nascida em 1938  e com muita saúde e disposição  nos seus setenta e cinco anos bem vividos. Casada com Antonio Dib, eles  têm os bem-sucedidos  filhos Maria Luísa e Luciano e cinco netos homens, alguns  já em idade de lhes  fornecer bisnetos.

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Casei-me em 1958 com Marina Parisi, que faleceu a 20 de abril de 2009, com setenta e sete anos.

Dos nossos cinco filhos, quatro são casados: Ana Lúcia, mãe de Fernando, Paulo e Eduardo; Márcio, pai de Gabriel; Marco Antônio, pai de Ana Helena; Maria Paula, mãe de Tomás e de  Alice.

O caçula João Carlos continua firme na feliz solteirice, aos quarenta e quatro anos.

Não sei precisar quanto primos-irmãos cheguei a ter. Algumas dezenas deles, muito mais do lado Bertocco. Meu pai não teve irmãos que houvessem sido pais. Em contrapartida, muitas irmãs que tiveram filhos  registrados com  os sobrenomes paternos, apenas. A quase totalidade deles já morreu.

Fazendo cuidadoso levantamento, chego à dura conclusão de que me restam aqui em São José do Rio Pardo bem poucos primos-irmãos. Filhas de Carolina Bertocco e Pedro Rondinelli:  Zizinha e Zulmar ( a Nininha, companheira de turma na Escola Normal). De Mercedes Bertocco e Lourenço Scali: Lilo, Lucy e Lélia; de    Maria Bertocco e Serafim Beraldi: Lourdinha; de Antonio Bertocco e Noêmia Bortolotto: Rita, Elizabeth, Regina, Maria Eugênia, Fernando e Homero; de Teresa Bertocco e Angelo Luigi Bianchin: Guilherme; de Marcello Bertocco e Amália Righetti: João Batista; de Mário Bertocco e Aléria Raddi: Hermenegildo. Moram em cidades próximas três filhas de José Bertocco e Luísa Della Torre Bertocco: Celina Teresa, Vera Lúcia e Albina Célia.

Os elos de parentesco, tão fortes no passado, perderam força com o tempo, com a distância e com  a falta de convívio. Pouco sei dos filhos e dos netos de meus  primos todos. Mantenho contato pela internet com Carlos Alberto Nunes (Lauria) e Sônia Bertero Stocco (Bertocco). Essas relações são como aqueles círculos concêntricos formados por pedras jogadas na água – desaparecem rapidamente se outras pedras não são sempre  jogadas.

 Perdi recentemente, com idades avançadas, cinco primos-irmãos: Nélson e Walda Biasin (Lauria); Pedro Rondinelli Filho, Maria Cecília Bertocco de Andrade  e Isabel Beraldi (Bertocco).

 Uma palavra de saudade à prima Maria Helena Bertocco Landini, companheira de tantas lutas na direção da nossa Faculdade de Filosofia.

 O mais idoso dos meus primos-irmãos remanescentes é figura exemplar de  moderação  e de prática do bem: o padre Roque Beraldi (afilhado de batismo de minha mãe), hoje com noventa e dois  anos de idade. Reside em São Paulo e tem cerca de setenta anos de sacerdócio claretiano. Sua pele é rosada, sem rugas; mastiga muitas vezes cada porção de alimento que leva à boca. Um sábio de bem com esta vida e em paz com a futura.

 Consigno com prazer que  tenho sido bisavô honorário  de Leonardo, o Leo,  neto de Gláucia Tessari, casada com meu filho Marco Antônio. Disseram a ele que minha falecida mulher era a bisa Marina. Daí ele, aos três anos, chegou por si mesmo à inteligente conclusão de que eu só poderia ser o biso Marino!

 

22/03/2014
emelauria@uol.com.br

 

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