Memória euclidiana

 
Pintura de Giudice a partir de uma foto antiga.

 

O ESTATUÁRIO/ESTATUTÁRIO

Na Revista da Academia Paulista de Letras comemorativa do centenário da morte de Euclides da Cunha (n.° 128, de novembro de 2009), nota-se o grande empenho de Francisco Marins,  autor de A aldeia sagrada, em valorizar o euclidianismo rio-pardense. Nomes como os de Honório de Sylos, Olímpio de Sousa Andrade, Oswaldo Galotti, Hersílio Ângelo e Adelino Brandão são destacados com louvor e justiça. A matéria sobre o  traslado dos despojos de Euclides do Rio de Janeiro para São José do Rio Pardo, ocorrido em 1982, com passagem pela APL, mereceu ampla republicação. Até um óleo do pintor argentino Eduardo Ángel Giudice radicado em nossa cidade, que mostra a cabana sem a redoma, a paineira e a ponte de Euclides, serve de contracapa ao belo volume. O quadro original é de propriedade da Dra. Débora Poggio Perillo, que me autorizou fotografá-lo e fazer uso dele.

A mim mesmo, Francisco Marins solicitou um estudo sobre os maiores euclidianos. Evidenciei o trabalho de Oswaldo Galotti, Hersílio Ângelo, Moisés Gicovate, Adelino Brandão e Ivo Vannucchi. Além disso, Marins fez incluir  entre as páginas marcantes de Euclides, na quarta parte da Revista,  meu ensaio sobre "Judas-Ahsverus", de Contrastes e confrontos. A montagem do Judas, no entendimento unânime dos especialistas, é uma das mais brilhantes  produções euclidianas. Ao ver o meu estudo posto em relevo numa edição comemorativa da Academia Paulista  de Letras, fiquei feliz e agradecido pela deferência de Marins.

Cometi, porém, uma imprudência que muito me aborreceu e que desvalorizou sobremodo a inserção de meu texto em tão prestigiada publicação: ao invés de mandar a matéria digitada, revisada e pronta para a impressão, enviei cópia dela conforme consta de meu livro Ensaios euclidianos, o que obrigou alguém a digitá-la de novo, cometendo uma  falha de  revisão incompatível com o prestígio cultural da Revista da APL: ao invés de estatuário (escultor de estátuas) palavra básica no meu estudo teórico, saiu reiteradamente estatutário, termo com certeza do agrado e conhecimento de quem, burocraticamente, digitou e conferiu com total desleixo meu escrito. Quer dizer: todo o trabalho euclidiano de arquitetar o Judas, com base no imbatível Estatuário, do padre Antônio Vieira, caiu por terra e esvaziou  o sentido de minha análise comparativa. Um erro inadmissível e imperdoável.

Francisco Marins deve ter ficado uma fera com os autores de tamanha batatada.

 

FOI VOCÊ?

Não raras vezes, quando alguém me diz haver lido algo que eu tenha escrito, faço a pergunta surpreendente: "Ah, então foi você que leu?" - querendo com isso dizer que, como a maioria das pessoas que colaboram em jornais, eu não tenho muita ilusão quanto ao número de leitores verdadeiramente atentos.

Quem empregou pela primeira vez a irônica interrogação foi o velho Moisés Gicovate, autor de Eu-clides da Cunha - uma vida gloriosa,  livro de excelente aceitação. É que, muitos anos depois desse sucesso editorial da Melhoramentos, ele lançou um volume de  interesse restrito sobre o direito agrário brasileiro, que vendeu poucos exemplares.

Certo dia, foi cumprimentado na rua, em São Paulo, por um ex-aluno seu, do tempo em que lecionava Geografia no Colégio Rio Branco, mantido pelo Rotary Clube.

- Que prazer revê-lo, professor, depois de tantos anos! E estou a par de suas atividades atuais, tanto que um dia destes adquiri seu livro mais recente, o de direito agrário...

- Ah, então foi você?

Não sei se o ex-aluno entendeu todo o ceticismo da pergunta de Moisés.

 

DETESTO FRANGO!

Estava-se num festivo jantar no apartamento do casal Zina-Moisés Gicovate, na Rua Alfonso Bovero, no Sumaré, São Paulo.

Não citarei nome de mais ninguém ali presente, mesmo porque quase todos já devem ter morrido e nada há para se desfazerem os efeitos da gafe ali cometida.

Uma estudiosa das minúcias documentais da história paulista, quem sabe animada no terceiro copo de vinho de superior qualidade, achou necessário elogiar os pratos ali servidos e colocou especial ênfase num peixe, em seu entendimento perfeito na textura da carne, delicado no tempero, e isso e aquilo.

A anfitrioa, à vista de tantos encômios, sentiu-se na obrigação de fazer pequena retificação às palavras da de repente inflamada oradora:

- Há um engano aí, minha querida. Não se trata de carne de peixe, mas de carne de frango preparada conforme receita meio secreta, do conhecimento de poucas pessoas da minha família...

- Frango?

- Sim, frango.

- Eu detesto frango!

E afastou com certo descaso o prato que minutos antes havia conquistado seu fino paladar.

Foi trabalhoso quebrar o geral constrangimento e fazer a bela reunião retomar seu toque de amistoso convívio.

 

LENDO

OS SINAIS

Dálvaro da Silva, durante tantos anos professor do Ciclo de Estudos Euclidianos como especialista nas obras de Euclides fora de Os sertões, residia em Jaú. Além de lecionar Português no Instituto de Educação da cidade, era advogado militante.

De repente, ele percebeu estranha correlação entre dois fatos sociais que pareciam não ter a menor ligação entre si: à medida que os fazendeiros da região, antes  produtores de café, dispensaram seus colonos e passaram a alugar suas terras para o cultivo da cana por poderosos grupos agroindustriais, os serviços de advocacia declinaram de modo sensível. Tinha havido um despovoamento das áreas rurais e naturalmente desaparecido as tensões comuns entre patrões e empregados.

Dálvaro tomou, então, a providência que acabou mostrando-se correta: mudou-se de Jaú e estabeleceu-se em Campinas, onde jamais lhe faltaram boas causas.

 

AGRADINHO IMERECIDO

A Casa de Cultura Euclides da Cunha, hoje subordinada ao Departamento de Esporte e Cultura do município de São José do Rio Pardo, durante algumas décadas foi dependência estadual, de início ligada ao Serviço de Fiscalização Artística, da Secretaria do Governo, depois vinculada à Secretaria da Cultura. Meu anseio, cada vez menos viável, sempre foi que a Casa se transformasse numa fundação de direito público, à semelhança da Casa de Rui Barbosa (Rio de Janeiro) e da Casa de Joaquim Nabuco (Recife). Sonho de uma noite de verão, já se vê.

*

Quem já teve de lidar com os recursos disponíveis para a realização de uma Semana Euclidiana, sabe como eles são irrisórios e de difícil obtenção, porque na mentalidade contábil que domina o setor público, educação e cultura são gastos e não investimentos de caráter social. Daí a eterna luta para se conseguir um dinheirinho daqui, outro dali, sempre na bacia das almas.

*

Quando um secretário da Cultura do estado de São Paulo sugeriu ao então diretor da Casa que convidasse o doutor fulano de tal  para a conferência de abertura de uma Semana, na verdade passava ao pobre diretor uma ordem indiscutível. Com certeza o secretário devia um agradinho ao doutor.

E foi assim que, completamente fora da filosofia então dominante no Ciclo de Estudos Euclidianos, no dia 9 de agosto de um remoto ano o doutor fulano de tal, todo pompa e circunstância, depois de convenientemente saudado e incensado por um subalterno, pigarreou, saudou os presentes e iniciou sua memorável contribuição para melhor se compreender a importância de Euclides e de Os sertões na vida nacional:

"Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha nasceu a 20 de janeiro de 1866 na Fazenda Saudade, município de Cantagalo, na então província do Rio de Janeiro"...

E foi por ali fora, lendo  um calhamaço de sensaborias que algum ajudante seu compilou de livros didáticos.

*

Houve gente querendo fuzilar com os olhos o intrépido conferencista, que, no entanto, saiu todo feliz do local, certo de haver dado seu generoso quinhão de conhecimento aos estudos euclidianos.

Voltou na mesma noite para São Paulo e deve ter contado maravilhas de sua excursão civilizatória a São José do Rio Pardo.

 

22/02/2014
emelauria@uol.com.br

 

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