Trem de ferro

 
Do quintal de casa

 

Quem, tendo conhecido, não guarda boas lembranças do trem de ferro, do verdadeiro trem de ferro --  igual  àquele  que apitava tão próximo da gente, com a locomotiva cinzenta  envolta em enérgicas lufadas de vapor?

Interrompido pela decamilenar enchente de 19 de janeiro de 1977, o tráfego de trens no ramal que saía de Casa Branca, passava por aqui e ia para os lados de Guaxupé, estava  condenado à extinção havia muito tempo.

Como presidente da Câmara, logo depois daquela catástrofe, acompanhei o prefeito Celso Amato à  FEPASA, para cuidar da desejada manutenção do ramal. A resposta técnica veio desanimadora:  o  trecho seria  economicamente viável como transportador de carga, se houvesse um fluxo anual de cinquenta e cinco mil toneladas por quilômetro da linha. A média dos últimos anos mal chegava a seis mil.

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O que restou da ferrovia em São José? Além da saudosa lembrança guardada  na memória cada vez mais fraca de velhos,  um fotogênico pontilhão nos fundos da Nestlé,  umas casinhas por enquanto mantidas em pé nas proximidades do viaduto (ponte nova) e a estação, remodelada para a instalação do curso de Educação Física da Faculdade de Filosofia. Isso foi feito num meu mandato de diretor, entre 1997 e 2000, respeitado com rigor o aspecto arquitetônico do prédio, de inspiração inglesa. Não sei como vem sendo usada atualmente.

Há alguns anos, ainda era visível na estaçãozinha de Vila Costina  o local em que os vagões de bitola estreitíssima (sessenta centímetros) despejavam direto nos da Mojiana (bitola métrica) a produção de café em coco da região. Era o último sinal que testemunhava  arrojada iniciativa empresarial:  José da Costa Machado, que fora presidente da província de Minas Gerais (1867-1868), quando a capital ainda era Ouro Preto, instalou-se   por estas bandas, por volta de 1870,  abriu a fazenda Vila Costina e construiu por conta própria uma pequena ferrovia que ia de Vila Costina até São Sebastião da Grama.

A descendente do fazendeiro,  Sr.ª Maria Isabel Machado , entregou a mim, como diretor da Faculdade, um precioso material que reúne tudo a respeito não da fazenda, da ferrovia, mas de muitos outros aspectos da intensa atividade de José da Costa Machado e de seu filho Labieno da Costa Machadofundador da cidade de Garça, no então chamado sertão de São Paulo. O Prof. Marcos Demartini pesquisou o valioso acervo e fez dele o assunto de sua vitoriosa tese de mestrado em História,  na UNESP de Franca: “A Empresa de Terras Labieno da Costa Machado”.

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Antes da filosofia rodoviarista posta em prática pelo presidente Juscelino Kubitschek (1956-1960) e seu sonho de cinquenta anos de progresso em cinco, viajar significava andar de trem, porque as rodovias eram poucas e ruins. Ia-se a São Paulo de trem, numa viagem de não menos de nove horas, com baldeação  em Campinas. Descia-se dos acanhados vagões de madeira da Mojiana, puxados por locomotivas a lenha, e entrava-se nos da The São Paulo Railway, depois rebatizada de Estrada de Ferro Santos a Jundiaí. Metálicos, limpíssimos, confortáveis, tracionados por locomotivas elétricas que desenvolviam velocidades próximas dos cem quilômetros por hora, em segura bitola larga. Eram os trens da Inglesa, símbolos de um mundo que se acabou perdendo entre nós.

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No início de minha carreira no magistério público, escolhi cadeira nas lonjuras de Miguelópolis, norte paulista. Para ir até , tomava aqui o noturno de meia-noite e pouco; baldeava em Casa Branca, passava por Ribeirão Preto e chegava a Ituverava doze horas depois, se não ocorresse atraso  nos superlotados trens  de peregrinos em busca dos milagres do Padre Donizetti, em Tambaú.. Havia ainda um finalzinho de viagem entre Ituverava e Miguelópolis  feita de jardineira por uma estradinha de fazendas.

Quando diretor da Casa Euclidiana, indo a São Paulo a serviço, requisitava uma cabine e ia muito confortável num vagão-leito. Demorado, sem dúvida, mas   cômodomais privativo do que o mais moderno ônibus de hoje.

Passeio predileto de meus filhos bem pequenos: ir de trem, com a mãe, até Itaiquara. E voltarmos todos  de carro, comigo. Isso faz tempo à beça.

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O que se perdeu  com a opção rodoviária feita por JK é difícil de se avaliar. No grupo escolar aprendi que o Brasil tinha trinta e três mil quilômetros de vias férreas. Isso no começo da década de quarenta. Hoje a rede nacional tem pouco mais de vinte e oito mil quilômetros, muitos deles inativos. O trem foi ostensivamente substituído pelo caminhão, pelo ônibus, pelo carro particular. Nem assim temos boas estradas. Com a terceira malha rodoviária do mundo um milhão e setecentos mil quilômetros, cento e setenta mil são pavimentados. E olhe-se : tirando-se o caso específico de São Paulo e sua vasta coleção de escorchantes pedágios a cada cinquenta quilômetros, as estradas  asfaltadas do Brasil estão esfarelando, as pontes ruindo, os acostamentos servindo melhor ao tráfego do que o leito carroçável. Estudo recente mostra que das vinte melhores rodovias brasileiras, dezenove são paulistas. E haja dinheiro para trajetos mesmo relativamente curtos, como daqui a São Paulo. Quanto se gasta atualmente de pedágio numa viagem de ida e volta?

Paradoxalmente, quando se fala na exorbitância dos pedágios paulistas, nossos vizinhos, os  mineiros em particular, dizem que reclamamos de barriga cheia e nos fazem elaborados cálculos provando que ao fim eles pagam muito mais para viajar do que nós: alinham a nosso favor  o consumo menor de combustível, o mínimo  desgaste dos veículos, o encurtamento das viagens, a segurança dos passageiros e motoristas. Vi um caminhão com placas de uma cidade sul-mineira com a reveladora inscrição: VELOCIDADE CONTROLADA POR BURACOS...

Tudo bem, mas que o pedágio paulista é caro, isso nem se discute. Além do mais, a mentalidade caminhoneira, prazerosamente estimulada pelas montadoras estrangeiras aqui instaladas, tem levado o País a desprezar outros meios baratos e eficientes de transportes, como a hidrovia. A experiência paulista de navegação nos rios Tietê e Paraná  mereceria  frutificar em outros exemplos. Porque no Brasil, navegação  como meio fundamental de transporte vem acontecendo na Amazônia, em condições tão precárias, que não raro tomamos conhecimento de naufrágios de embarcações não sucateadas, mas superlotadas de passageiros e mercadorias. Isso quando o nível das águas não   é tão baixo, que nem permite navegação.

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Puxa, aonde vim parar por causa da beleza de um verdadeiro trem de ferro e sua resfolegante locomotiva a vapor!

Na verdade, perdemos o trem da história e temos de invejar o que vemos e ouvimos a respeito de confortáveis viagens ferroviárias nos Estados Unidos, Japão e Europa. Com um TGV (trem de grande velocidade) como o que une as principais cidades europeias, a distância entre São Paulo e Rio de Janeiro, cerca de quatrocentos quilômetros,  seria coberta em menos de duas horas, alcançadas  às vezes velocidades de trezentos por hora... Hoje, apesar das  enganosas promessas eleitorais,  nem trem de passageiros existe entre o Rio e São Paulo! O que restou foram os de subúrbio, caindo de maduros, ou os de pequenas viagens turísticas, de  procura meramente recreativa.

 

21/11/2015
emelauria@uol.com.br

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