Coisas nossas

 
A capela de Santa Teresinha é a mesma de hoje.
Diferença: não havia casa à sua frente, que dava para uma pequena praça.

 

·         Pouco mudou em seu aspecto externo a pequena casa em que nasci, no Buracão. Rua José Teodoro, 367. Um fio d’água ainda passa por baixo dela, vindo das minas que nascem ao pé do morro. Havia muitas hortas por ali, regadas com aquelas águas recém-brotadas da terra.

  

·         Som mais antigo? Não só mais antigo, porém com certeza incomum: o ronronar do motor de raríssimo automóvel por aquelas bandas: o carro de praça de Carmo Santurbano, que morava  ali na Rua do Paraíso e vinha almoçar em casa em hora certa.

 

·         A capela de Santa Teresinha é a mesma de hoje. Diferença: não havia casa à sua frente, que dava para uma pequena praça. Em forma de V, saíam dali duas estradinhas: a da direita, hoje Rua Santa Teresinha, ia dar no Brejinho e no caminho precário para São Sebastião da Grama, atravessando uma grande extensão de terras, vagamente chamada de Macaúba. A da esquerda morria em frente ao portão de entrada da bela chácara da família Figueiredo.  Essa estradinha desapareceu, engolida pelas casas ali construídas.  A própria casa-sede sumiu, cortada pelas ruas do novo loteamento.

 

·         Chamava-se Hercy Figueiredo e foi rainha dos estudantes do Euclides da Cunha há uns setenta e cinco anos. Era belíssima, parecida com a artista do cinema americano Dorothy Lamour, a lançadora do sarong, tipo de bermuda filipina que causou furor. Hercy viveu cerca de noventa anos e conservou pela vida toda os traços de sua radiosa formosura.

 

·         Toda a área onde é hoje o Centro de Saúde pertencia ao Grupo Escolar Dr. Cândido Rodrigues, o grupo de cima.  Lá existia a casa do zelador. No porão do prédio da escola durante muito tempo houve criação de bichos-da-seda, alimentados pelas folhas das amoreiras ali plantadas a propósito. Conheci como zelador Caiuby Jordão, grande pistonista. Era chefe de banda, a Lira Rio-Pardense, muito ligada ao Rio Pardo Futebol Clube. Durante anos e anos Caiuby liderou um afamado conjunto de salão, a Melodia Orquestra. Quando tocava, suas bochechas se avolumavam e seu rosto ficava vermelho.

 

·         Ainda posso ver o servente, seu Pedro, badalando a sineta que anunciava o fim do recreio dos meninos. Alguns que podiam, compravam sanduíches de mortadela preparados por D. Teresa. A maioria levava de casa pão com qualquer coisa. Uns permutavam pedaços.  Outros pediam um naco. Havia os declaradamente pobres, assistidos pela Caixa Escolar, uma espécie de precursora das associações de pais e mestres.

 

·         Sei na ponta da língua os nomes de minhas professoras no grupo escolar: Cândida, Zita, Isaura, Laudelina. Cada uma delas com seu estilo e suas preocupações. Mas antes, nas duas ou três primeiras semanas de minha vida de aluno, houve outra que me deixou forte imagem. Chamava-se Maria Leal e nunca mais a vi ou tive qualquer notícia dela. Deve ter-se removido para outra cidade, quem sabe para outro país.  Era bonita, vestia uns vestidos de cores claras. Devia ser solteira, porque me lembro dela saindo sozinha do Hotel Brasil. Desapareceu sem deixar vestígios. Como terá sido a vida de Maria Leal, minha primeiríssima professora? Tenho aqui comigo que ela foi o objeto de minha incursão inaugural no difícil reino do platonismo.

 

·         Da curta passagem familiar pelo sobradão da Treze de Maio onde hoje se ergue um edifício de apartamentos, meu olfato guardou o cheiro de folhas maceradas de gerânio e de um velho, velhíssimo pé de louro.

 

·         Ah, também a inesperada porta envidraçada do quarto principal abrindo-se para minúscula sacada com balaustrada de ferro, de onde se apreciava a rua, ainda de terra, lá embaixo.

 

·         Logo à frente, a Casa Nascimento e o Restaurante Zenaro; mais à direita a alfaiataria de Antônio Simonetti  e o Hotel Brasil, então o maior prédio da cidade; mais à esquerda, a alfaiataria de Lourenço Landini, a Farmácia Nossa Senhora Aparecida (Galileu Rondinelli )  e a loja de José Meríngolo. Nos extremos da rua, fechando-a definitivamente: o prédio de uma escola em construção – o Grupo Escolar Tarquíinio  Cobra e a Santa Casa.

 

·         De espantar o tamanho da casa que meu pai comprou na Várzea. De espantar o tamanho do quintal, com sua terra estéril, porque poluída com soda de limpar garrafas do guaraná e da gasosa antes ali fabricados.  Meu pai não quis ou não pôde comprar todo o terreno. Descartou a parte onde hoje funciona uma lavanderia. Essa área não era murada, mas delimitada com a rua por uma cerquinha de arame farpado e bambu, onde sobreviviam uns espinhentos pés de figo-da-índia, alegria da meninada que jogava bola num campinho em desnível.

 

·         Daqui de onde escrevo, posso ver o portão da minha garagem. Quando nos mudamos para cá, o que havia ali era uma porteira. Sim, uma porteira pesada, de peroba, por onde podiam passar veículos e animais. Era a entrada de serviço da casa. Isso faz tempo. 1939.

 

21/10/2017
emelauria@uol.com.br

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