ACIDENTE DE TRÂNSITO

 

Tranqüila a rua do bairro. Tranqüila a qualquer hora do dia ou da noite. Claro, lá uma vez ou outra, havia  corridas malucas entre uns rapazes destrambelhados, isso alta madrugada, quase sempre de sexta para sábado. Então se ouvia o chiado de pneus, o estrondo da batida, o barulho de vidro moído, algum xingamento, a sirene espalhafatosa e desnecessária da polícia. Vizinhos mais curiosos metiam  roupões e saíam à calçada, em busca de novidades. Quase nunca aquelas trombadas davam em nada, mesmo porque todos os envolvidos – motoristas inexperientes e às vezes sem carta, pais carrancudos até demais, mães à beira de desproporcionais ataques de nervos – o que mais queriam era se livrar daquelas enrascadas e dar os trâmites por encerrados, sem necessidade de boletim de ocorrência e outras amolações. Não tendo havido sangue, como diziam...

 

Então acabou acontecendo   o quase inconcebível em plena luz do dia: o bancário aposentado de vida pregressa inatacável, orgulhoso de JAMAIS ter botado os pés numa delegacia de polícia (quanto mais no fórum!), pilotando sua Variant 86 em estado de nova, tendo ao lado sua discreta senhora, atravessou inadvertido o único cruzamento de algum perigo num raio de dois quilômetros e atingiu em cheio um veículo que subia rua preferencial em velocidade compatível.

 

Quando o bancário aposentado deu pela coisa, tinha acertado bem no meio a porta traseira de um carro com aparência de novo, arremessando o veículo no meio-fio da ponta da esquina e o vendo dando quase um cavalo-de-pau. O pneu dianteiro direito estourou, o carro ficou meio penso.

 

Espantado com aquilo tudo, mas tomado de inesperado sangue-frio e clareza de raciocínio, saiu da Variant e se dirigiu ao carro atingido. Lá dentro estava uma só pessoa, uma senhora de seus trinta e tantos anos, meio fornida de corpo, morena momentaneamente pálida, com um galo na testa e o sinal do impacto no vidro do pára-brisa, rachado em pequena extensão. Tentou conversar com ela, prestar-lhe algum socorro, mas aí chegaram os curiosos de sempre e tomaram conta da situação. Uma vizinha levou a motorista para dentro de casa e lhe deu primeiro água com açúcar, depois um chazinho de erva-cidreira. Um amigo do motorista distraído, também bancário, fazia toda a força para acalmá-lo, quando na verdade ele estava injustificadamente calmo e muito lúcido.

 

Ele e a mulher ficaram por ali, à espera da polícia, da perícia, do que quer que fosse. Ele assumiu toda a culpa, mandou chamar o rapaz da seguradora. A moça do Corsa (era um Corsa verde-escuro) foi logo dizendo que não tinha seguro, só o obrigatório contra terceiros .O bancário olhava-a embevecido, dando mil graças por não a ter ferido pra valer. Tirando o galo na testa, ela estava ótima  e até fez menção de sair logo dali.

 

-- Não senhora, explicou-lhe o jovem PM canhoto encarregado da lavratura do auto de infração. A Sra. precisa ficar por aqui pra nós vermos se está tudo bem, passar pelo hospital para exame de corpo de delito, que houve ferimento, e mais tarde ir à delegacia para a confecção do beó.

 

Ali ninguém sabia o que vinha a ser um beó, mas o jeito foi esperar. A motorista do carro atingido foi ao hospital e o bancário aposentado mais uma vez assegurou a ela, ao jovem policial e a quem mais quisesse ouvir que assumia toda a culpa e se colocava à  inteira disposição das autoridades. Aí, através do rádio, da delegacia informaram que estavam todos dispensados, mas que o abalroador e a abalroada, melhor se acompanhados de seus advogados, deveriam comparecer perante o  delegado de polícia, para as providências  necessárias e de praxe, naquela mesma tarde, às horas tantas.

 

A mulher do bancário-agressor, espírito econômico e comedido, cochichou ao ouvido do esposo, enquanto iam a pé para casa, porque a Variant estava (sem nenhum trocadilho) um pouco avariada e dali iria para a oficina credenciada pela seguradora: “Não se esqueça, Alfredo, que você é advogado, não precisa contratar ninguém para se defender num caso simples como esse.”

 

O marido estava com a resposta na ponta da língua (“Não sou advogado, sou bacharel em Direito, nem estou em dia com a anuidade da Ordem”), mas percebeu que o momento não era de tergiversações e se fechou em copas.

 

Estranhas dores se manifestavam aqui e ali no corpo de Alfredo, como se ele tivesse levado “uma sova de cacetadas”, em sua própria frase. Meia hora antes do que seria necessário,  já chamara um táxi e fora à delegacia enfrentar a autoridade policial e (tremia só em pensar) aquela mulher do Corsa verde que, cheia de razão e dentro das regras do trânsito, fora atingida em cheio por ele, que não propriamente estava naquele exato momento do choque discutindo com a mulher, mas falando gesticulado com ela em voz mais áspera, um pouco mais irritada. Sentia-se assim triplamente desguarnecido: podia esperar a solidariedade mínima da mulher, mas não sua cumplicidade total; sabia que a autoridade policial lhe faria umas perguntas embaraçosas; nem ousava imaginar o que o marido e o  advogado da parte contrária lhe podiam armar de cilada.

 

Logo à chegada, foi percebendo que o ambiente não lhe seria tão hostil: a motorista do carro atingido estava de muito boa cara, bem cuidada, um pouco carregada de maquiagem na testa; não se fazia  acompanhar de nenhum advogado nem de outra pessoa qualquer. Assim que ela o viu, fez-lhe sinal de querer falar-lhe em particular.

 

-- Pois é, Sr. Alfredo, as coisas acontecem quando a gente menos espera.

 

-- Isso mesmo, Sra....

 

-- Fabiana. Sabe, Sr. Alfredo, posso ter a certeza de que o Sr. mandará consertar meu carro?

 

-- Claro, dona Fabiana! Claro. Não houve dano maior na lataria, no alinhamento das rodas. A porta atingida será trocada por outra nova e pintada na cor original. Será posto outro vidro do pára-brisa. O pneu substituto sairá zero-quilômetro.

 

-- Olhe, dispenso o “dona”. Só Fabiana. Não moro aqui e meu marido, que trabalha de viajante, vai demorar uns dez dias fora de casa. Nesse tempo o carro ficaria prontinho?

 

-- Acho que sim, Fabiana. Tenho certeza que sim. Mas e o inquérito policial, as formalidades legais todas, Fabiana?

 

-- Isso eu já conversei com um investigador de minha cidade, que trabalha aqui. Ele me disse que se as partes acertarem tudo numa boa, nem haverá abertura de inquérito e o caso morrerá aqui na Delegacia...

 

-- Para mim, seria ótimo. Eu só teria de agradecer à Sra., isto é, a você, Fabiana...

 

-- Para mim, nem só seria ótimo, seria tranqüilizador. Daria muito trabalho e eu gastaria muita saliva explicando ao meu marido o que estava fazendo sozinha nesta cidade, em plena terça-feira às dez da manhã. Ele nem sabe do tratamento médico que faço aqui, aliás por culpa dele...

 

Bem que Alfredo ficou com cócegas na língua de perguntar mais coisas àquela motorista desgarrada, que estava com muito medo do marido e queria esquecer, mais depressa do que ele, uma trombada daquelas, em que também ela, embora trafegando em via preferencial, estava por certo com o pensamento muito, mas muito longe.

 

O delegado os chamou a sua sala e lhes explicou a situação. A razão estava toda com dona Fabiana, que, não tendo sofrido senão pequenas escoriações e aconselhada por um investigador muito seu amigo, dizia-se disposta a esquecer tudo, desde que o Sr. Alfredo se comprometesse por escrito a cumprir as seguintes exigências: 1. Arcar com todas as despesas com o Corsa, antecipando-se ao próprio seguro; 2. Entregar o veículo inteiramente recuperado na residência de dona Fabiana até tal hora do dia tal; 3. Providenciar-lhe imediato transporte para seu retorno à cidade de origem.

 

O Sr.Alfredo faltou jurar que faria tudo aquilo, assinou uma papeladanão se ofereceu para ele próprio levar de táxi a gentil Fabiana à sua cidade porque sabia muito bem com quem era casado.

 

 21/08/2004
(emelauria@uol.com.br)

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