Nós vai ou não vai pescar?
Sei não, mas tenho o direito de considerar alegremente provocativas mensagens que me chegam a propósito de um livro autorizado pelo MEC a circular por todo o Brasil, defendendo a aceitação e o uso escolar da vertente inculta da língua portuguesa. Provocativas porque partem de ex-alunos, todos amigos e quase todos bem-sucedidos na vida, que estão mudamente a me cobrar: “E então, professor, como é que ficamos? Em outros tempos, por causa de um errinho de ortografia, por causa de uma vírgula importuna, por causa de uma concordância meio esquisita, o senhor enchia nossa folha com tinta vermelha, dava-nos notas baixas, deixava-nos para a segunda época, em dependência, quando não perdíamos o ano...Como é que ficamos?” * Ficamos que os tempos são outros, a escola é outra, a vida é outra. * Professor de Português que se prezasse tinha de assinalar tudo, descontar tudo nas notas. Os programas das escolas oficiais eram uniformes em todo o País, elaborados pela Congregação de Professores do Colégio Pedro II, do Rio de Janeiro, então capital federal. Pouco interessava que o ginásio (1º ciclo) e o colégio (2.º ciclo) se localizassem no Rio, em São Paulo, na Bahia, em Minas ou no Ceará. As exigências eram as mesmas, os textos para estudo deveriam ser de escritores de nomeada, quase obrigatoriamente já mortos. Brasileiros ou portugueses, romancistas, contistas, poetas, oradores, jornalistas. A ideia era simples e pretensiosa: os alunos do ensino secundário, escolhidos através de exames de admissão, por isso mesmo deviam cada vez mais mostrar-se capacitados a falar bem a língua culta e a escrever nela, tomando como modelo o que de melhor havia sido escrito ao longo dos séculos. Lia-se de Camões a Vieira, de Camilo a Alencar, de Herculano a Gonçalves Dias, de Rui a Euclides. A frase por assim dizer miraculosa era: “Aprende-se a gramática pela língua e não a língua pela gramática” – o que levava à leitura imitativa dos clássicos de todos os tempos. * Antenor Nascentes, professor de Português do Pedro II, baseando-se nas redações dos alunos da melhor escola secundária do Brasil, chegou a elaborar uma temida tabela dos erros crassos: bastaria ao aluno cometer um dos deslizes catalogados, para perder até metade do valor da nota máxima. Entre esses crimes de lesa-língua estavam a discordância verbal, a separação por vírgula do sujeito e verbo imediatamente colocados, o desacerto da regência verbal, a construção de frases desconexas... Felizmente, ninguém podia seguir o receituário...
Lembro-me dos livros em que estudei no ginásio e no colégio. A teoria gramatical, a análise sintática, as leituras, a redação, tudo era dado com rigor e cobrado a cada passo. Ninguém levava em conta o ambiente familiar dos alunos, o nível cultural de sua própria cidade. Exigia-se que, por osmose, por decoração, por um tipo qualquer de milagre, aqueles meninos e meninas, oriundos às vezes de famílias em que ninguém nunca havia visto um livro ou lido um jornal, aprendessem concordância nominal e verbal, regência nominal e verbal, emprego do acento de crase, conjugação de verbos, pontuação, ortografia... E quantos aprenderam para sempre! * Iniciante no magistério, lá pela metade do século passado, só à custa de muito ensaio e erro é que fui construindo o meu próprio conceito de correção, de máxima valorização de que tudo que se pudesse tirar de bom dos alunos. Claro, as exigências legais continuavam as mesmas, o rigor era a palavra de ordem. Houve, em verdade, choro e ranger de dentes, mas também o estímulo, a paciência, o desejo de acertar.
O primeiro grande sinal de que as coisas iam sofrer radical transformação eu pude sentir nos cursos de atualização do pessoal docente, em São Paulo e em Campinas, por volta de 1975. Em São Paulo, os treinamentos eram efetuados numa escola então famosa – o Grupo Escolar Experimental da Lapa. O prédio, magnífico. Os professores do Centro de Recursos Humanos e Pesquisas Educacionais “Prof. Laerte Ramos de Carvalho”, ótimos. Ótimos e cheios de propostas novas, quem sabe resumíveis nesta mudança de foco: no trato da Língua Portuguesa, abandonava-se a gramática normativa, base de todo o ensino até então, e adotava-se a gramática descritiva, de forte embasamento na nova ciência que despontava em nosso sistema de ensino – a Línguística. Ou por outras palavras, deixava-se de ter preocupação com o erro de linguagem e procurava-se aproveitar o que os alunos, competentes sujeitos falantes de sua língua nativa, realmente usavam. De certa forma, começava a validade da frase “Nós vai pescar”, que agora causa tanta celeuma e até revolta. * O que chamou muito a atenção nesses cursos de atualização: os rabiscos, desenhos e escritos feitos pelos alunos nas paredes, portas e corredores, antes intoleráveis em qualquer escola que se prezasse, não eram apagados de um dia para outro. O aspecto geral do prédio passou a ser de deterioração. Um escândalo à parte: o conjunto musical dos alunos só tocava rock e tinha um nome para muitos de nós ainda inaceitável – Los bundos... É, nós nem podíamos imaginar o que viria pela frente, quase tudo causado pelo descaso no trato de questões levantadas pela exagerada democratização do ensino. * É de Celso Cunha, gramático de espírito aberto, o conceito de que na expressão da linguagem oral ou escrita, o falante/escrevente pode manifestar-se num dos quatro registros: 1.Culto tenso 2.Culto distenso 3.Inculto tenso 4.Inculto distenso Na escola tradicionalíssima, em que a noção do certo/errado como que comandava tanto o bem falar quanto o bem escrever, o ideal era que docentes e discentes não se afastassem do primeiro registro – o culto tenso. Daí as aulas essencialmente expositivas, as redações policiadas em excesso, o medo que os alunos tinham de manifestar-se frente aos professores. Daí as reprovações em massa, as desistências de tantas vocações mal aproveitadas. Daí também o surgimento de extraordinários alunos que enchiam de orgulho seus rigorosos mestres. * Coube aos escritores modernistas, entre os quais Mário de Andrade e Manuel Bandeira, dar prestígio e visibilidade ao registro culto distenso. Que se lembrem aqui os versos famosos de Bandeira, em “Evocação do Recife”, mais pelo que é defendido do que por sua expressão linguística: A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros Vinha da boca do povo na língua errada do povo Língua certa do povo Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil Ao passo que nós O que fazemos É macaquear A sintaxe lusíada * Pronto. Descoberto um ancestral dos defensores do Nós vai pescar... * O registro inculto tenso faz as delícias de quem ouve nossos políticos, não qualquer político, mas aqueles que bem gostariam de falar melhor, de escrever melhor, de saber expressar seus pensamentos. São apenas ridículos. * E o registro inculto distenso? É exatamente onde se localiza o tal Nós vai pescar. Bem verdade que, por exceção, um de seus usuários mais fervorosos chegou às culminâncias do poder e hoje ganha em meia dúzia de conferências o que um pobre professor não consegue na vida toda, mas isso não serve de justificativa e muito menos de estímulo à sua adoção... * Em suma: cabe ao docente de hoje não execrar o pobre aluno que vive num meio em que a regra é dizer nós vai, nós pegô, nós fez. Também lhe compete não ocultar dele que esse registro inculto distenso lhe ficará bem apenas em suas relações sociais do mesmo nível. Se, porém, ele quiser ascender social e culturalmente, terá de aprimorar-se e adaptar-se ao que prescreve o registro mais cuidado, menos vulgar. Falar e escrever mal serão sempre formas de exclusão social e não de inclusão, como apregoam demagogicamente alguns teóricos agora em evidência repentina.
21/05/2011
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