COMPULSÓRIA, EXPULSÓRIA

             A Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados emitiu parecer favorável a projeto de emenda constitucional que modifica a idade extrema de permanência do funcionário público  no serviço ativo.

            ouvi comentários errôneos e desfavoráveis à medida, como se se tratasse de algum novo acréscimo ao tempo de trabalho contado para a aposentadoria. Nada disso. A Constituição Federal dispõe no inciso II do parágrafo 1.° do artigo 40 que os servidores titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, serão aposentados compulsoriamente aos setenta anos de idade, com proventos proporcionais ao tempo de contribuição.

            Duplamente aposentado – como professor do magistério público de São Paulo, em 1983, e da Faculdade de Filosofia, CiênciasLetras de São José do Rio Pardo (autarquia municipal), pelo regime da CLT, no início de 2001, continuei nela exercendo normalmente minhas funções docentes até a véspera do meu setuagésimo aniversário ocorrido em fevereiro de 2002. Antes que alguém, no estrito cumprimento da lei, me impedisse de continuar trabalhando, oficiei à direção da Faculdade e anunciei meu afastamento definitivo, por causa da disposição constitucional.

 Não quis viver a vexatória situação de ouvir de alguém que, a partir daquele momento, eu não podia ministrar uma aula sequer... Aliás, tive de alertar a esse respeito três ótimos docentes de que o prazo de validade deles na Faculdade estava por vencer... Para aplicar a lei, como diretor, tinha estudado com empenho a questão e lido algumas decisões judiciais que não deixavam a mínima dúvida quanto ao sentido de aposentadoria compulsória, ou seja, obrigatória, forçada, expulsória. Acórdão de um tribunal estadual chegou mesmo à minúcia de descrever qual deveria ser a atitude de um dirigente público se o servidor atingido pela compulsória  teimasse em continuar trabalhando: ele não deveria encontrar nenhuma forma de registrar sua presença, deveria desocupar armário ou sala que tivesse na repartição e ainda convidado a se retirar de seu antigo local de trabalho...

 Alguém que eventualmente me , a esta altura do texto deve estar se perguntando se algum louco faria mesmo questão de continuar se matando quando poderia estar bugiando, dormindo, cuidando dos netos ou pescando. E pode ter certeza de não ser pequeno esse número de pessoas viciadas no batente...

 Claro, acho que em lugar algum do mundo, mesmo em países em que nãolimite etário de permanência no cargo ou função, alguém lutaria por continuar a exercer atividades penosas, estafantes ou de alto risco, mas sem dúvida alguma nos Estados Unidos, Canadá e muitos países da Europa magistrados, professores universitários, redatores, artistas de cinema e de teatro  costumam permanecer na ativa até alcançar idades provectas. O limite deles tem sido a própria capacidade de trabalhar, em casos excepcionais  mesmo perto dos noventa anos.

Duvido que também nesses países de alto nível cultural, professores de escolas elementares ou secundárias teimem em dar aulas. como , continuam trabalhando depois do período legalmente obrigatório somente os que sentem  real prazer no que fazem.

 Em atendimento a essas situações incomuns,  que tantas vezes coincidem com o interesse público e comunitário, é que se está propondo a elevação, no Brasil, desse limite etário: ao invés de setenta, passaria a setenta e cinco anos a idade extrema de o servidor público ou autárquico manter-se na ativa. Reconheça-se que a própria noção de velhice vem sofrendo constantes alterações por causa da melhoria geral dos padrões de vida e dos avanços da medicina geriátrica.

 Num país de tantos desempregados, não deve soar bem para os jovens brasileiros essa proposta pela qual durante mais cinco anos pessoas maduronas  passarão a ter legalmente assegurada a possibilidade de continuarem no exercício de funções públicas, mas a verdade é que essa permanência extra terá muito de proveitosa, em especial no que diz respeito  ao aproveitamento de tanta experiência acumulada.

 Volto a exemplificar com meu caso particular. No decorrer de 2001, último de minha permanência como professor da FFCL, pensava muito temeroso sobre aquilo que me parecia inevitável – de repente eu me veria desvinculado de uma escola que ajudara a fundar (fui da Comissão encarregada de estudar a sua criação), na qual lecionei por mais de trinta anos, e cuja direção ocupei por três vezes. Nem cogitava da remota possibilidade de voltar a trabalhar em colégios particulares ou de exercer a advocacia, que nunca me atraíra de modo irresistível. Continuaria, quando muito, a escrever para jornal, publicar um ou outro livro, dar uma palestra aqui ou ali.

 Daí a injeção de ânimo que me aplicaram, em meados de 2001,  Melânia Dalla Torre e Cármen Trovatto Maschietto convidando-me a assumir aulas numa instituição particular e por isso não atingida pela normal constitucional, a Universidade Paulista – UNIP, câmpus de São José do Rio Pardo, que se instalava. Primeiro me atribuíram as aulas de Linguagem Jurídica, no curso de Direito, e logo depois me deixaram à vontade na escolha das disciplinas que ministraria em Letras. Optei por Latim e Teoria da Literatura, até para surpresa delas, que pensavam ser Língua Portuguesa minha tendência natural. Eu queria continuar trabalhando, mas nem tanto... Tempos depois, substituí Linguagem Jurídica por Direito Constitucional, até que me fixei, por comodidade pessoal, no curso de Letras, aceitando Literatura Portuguesa.

 Neste 2005 sou responsável por seis aulas semanais. Trabalho, com muito prazer, e acredito que com boa aceitação dos alunos, às segundas e terças-feiras. Causo alguma inveja a sobrecarregados colegas no auge da atividade professoral, com cinqüenta horas semanais, quando me despeço deles ao final das aulas das terças e lhes anuncio meu longo e privilegiado fim de semana... Atésegunda-feira seguinte terei tempo para tudo, inclusive para o melhor preparo de aulas. Se o plano tiver saído a contento, hoje, 21 de maio, estarei em São Paulo assistindo ao musical O Fantasma da Ópera.

 Este o espírito da mudança constitucional que se estuda em Brasília. Trabalharão depois dos setenta, e até os setenta e cinco, os servidores públicos e autárquicos que quiserem e puderem.  Nas entidades privadas, continuará a não haver limite, mas sem dúvida o peso da idade se fará sentir bastante nas proximidades dos três quartos de século...

21/05/2005
(emelauria@uol.com.br)

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