Da hora presente

  
Alegria de viver.

 

A dar crédito aos articulistas de visão amarga, às revistas investigativas e aos destaques de programas televisivos que já foram amenos e agora mais parecem boletins de fatos policiais, o Brasil vive momento de perigosa desintegração social.

Quantas vezes você ficou sabendo, recentemente, de alunos drogados, de professores agredidos, de situações de pânico nas escolas?  E de escândalos, falcatruas em todos os níveis do executivo, do legislativo, do judiciário? E das pequenas/grandes desgraças familiares que decorrem naturalmente do que as pessoas vivem em todos os lugares?

Só não sabe quem não vê, quem não ouve, quem não sente.

 

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O passado é passado, imexível  – como se atreveu a inventar um dos primeiros sujeitos reconhecidamente incultos que chegou ao núcleo do poder federal. Adivinhar o futuro pode ser até lucrativa profissão para astrólogos, magos, cientistas sociais e comentaristas esportivos, mas a margem de acerto é tão baixa, que ninguém tem coragem de conferir os  prognósticos de um ano antes.

Com a até exagerada facilidade de comunicação dos tempos atuais, há registro de tudo, ficamos a par de tudo numa rapidez que chega a atordoar. Então você apanha um jornal do dia e coisas sabidas por outros meios não na véspera, mas até na antevéspera. Abre uma revista semanal e comprova como tudo envelhece e sai do noticiário no prazo máximo de dez dias. Passaram a produtos perecíveis, durando quase sempre menos do que um dia, prazo de validade que Malherbes deu às rosas.

 

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Apertando, apertando, o que deve ficar de um dia, de um mês, de um período mais largo? No plano pessoal de todos nós, há sempre aquelas vitórias contra as insídias do tempo, contra o desfazimento das coisas, contra o esquecimento inevitável, à vista mesmo do próprio desencadear das ações, por menores que tenham sido. Pequenas derrotas também, por vezes tão doloridas, porque afinal pouco influímos naqueles eventos de difícil catalogação, mas sabidamente acima de nossas forças, fora de nosso controle. Aquilo que os ingleses chamam acts of God - atos de Deus: somos por eles beneficiados ou prejudicados independentemente de nosso querer ou de nossos temores.

Não é fácil lidar com essas escassas vitórias nem com essas derrotas que tendem a repetir-se com o fluir dos dias. Valorizemos as vitórias, julguemo-nos imerecedores delas, para assim lhes sentirmos melhor o sabor inesperado. Consideremos as derrotas como decorrências naturais da vida vivida. É sempre bom lembrarmo-nos (quando nos queixamos de indisposições, limitações e impossibilidades) que há uma alternativa de ficarmos velhos: é morrer!

À nossa volta, a comprovação de como precisamos munir-nos de maciças doses de compreensão e tolerância  na análise de soluções dadas a problemas alheios, com repercussões, porém, em nossas vidas. Não a problemas criados, vividos e resolvidos de maneiras incompreendidas para tantos de nós, e sim à própria concepção geral  do mundo, da felicidade.

 

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Uma frase que em outras situações  teve até efeito humorístico, passa agora a merecer estudo mais aprofundado: “Os pais conseguem ensinar aos filhos que a gilete corta e que o cachorro do vizinho morde” – assim brincou há cinquenta ou mais anos Pitigrilli, hoje esquecido escritor italiano, em sua tentativa de alertar as pessoas quanto às grandes modificações advindas depois da guerra de 1939-1945, que abalou conceitos até então tidos como imutáveis. (Um dia destes, a estudiosa de História veio com uma revelação de cair o queixo: a Idade Média, para todos os fins encerrada no apagar das luzes do século XV, na verdade terminou  há poucos anos. Temos muito de medievais, ainda...)

Hoje, depois de tantas guerras, declaradas ou não, pouco resta de útil no sintético conselho pitigrilliano, mesmo porque ninguém mais se corta com gilete e pouquíssimos vizinhos se comunicam. Hoje os lanhados, as escoriações, as barbeiragens  se fazem com novíssimos materiais cortantes, nossos perfeitos desconhecidos.

 

 

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Além dos limitados horizontes de tantas vidinhas, há a nossa inserção na cidade, no país, no mundo. tudo é mais grave e menos aceitável ainda.

Como é que o nosso povinho, tido como cordato e cordial, foi perdendo seus contornos pacíficos, seu modo peculiar de ser e de agir? Como é que  se deixou brotar, vicejar e se alastrar  a desconsideração, o embrutecimento de tantas pessoas? Pode parecer caretice, reacionarismo, mas tenho comigo que o grande inimigo de nossa gente e de seu jeitão de  pensar e agir tem um nome: televisão. Não o maravilhoso veículo em si, mas o formato que assumiu no Brasil, com sua propaganda enganosa, com seu humor rastaquera,  com sua rançosa   modernidade, com a criação e estimulação de falsos ídolos, falsos porque descompromissados com nosso passado, com nosso presente, com nosso futuro. Tudo vale na conquista de quinze minutos de glória e na fixação de campeões de audiência. O resultado está: enquanto nada melhora de verdade nas camadas menos favorecidas, todos são levados a almejar a compra de tudo, a fruição de tudo, a participação em tudo, ainda que a preços que levem à bandidagem, à jogatina, ao vício, ao desregramento social.

Daí criancinhas de três anos, sob os olhares abobalhados dos pais, exibindo-se com desembaraço na imitação da cantorazinha de terceira categoria; daí a mocinha suburbana ou interiorana assumindo as posturas da atrizinha sem a mínima vocação, momentaneamente no gosto dos telespectadores grudados na novela das oito; daí a ascensão meteórica do esportistazinho medíocre, do politicozinho campeão de votos sabe-se como e  por quê; daí essas liderançazinhas nacionais de repente flagradas com a mão na cumbuca... Daí a naturalidade da prostituição disfarçada em turismo ou arte; daí o vale-tudo em tudo. Daí, enfim, este nosso Brasil tão sem classe, tão sem educação, tão sem saúde, tão sem cultura, tão sem futuro assegurado.

A televisão, no perverso formato brasileiro, ou cria ou estimula ou mantém todas essas formas de aviltamento pessoal, de completo desapreço ao trabalho, ao estudo, à persistência no caminho tantas vezes áspero do esforço mal retribuído. Ao invés, a criminalidade em alta, a vagabundagem institucionalizada, os males nacionais disfarçados na fantasia dos demagogos, jogados sob o tapete da sala de visitas.

 

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Muito pessimismo? Antes fosse. Organiza-se um certame internacional, com representantes de quarenta países, a respeito de conhecimentos básicos da matemática, da linguagem, da leitura. Quem fica entre os penúltimos ou declaradamente são os últimos? Os brasileiros, jovens de treze a dezessete anos, produtos inacabados de nossaescola, tantas vezes um encenado teatro em que uns fingem ensinar e outros fingem aprender. Nada que dure mais do que o cumprimento de uma tarefa que valha a promoção, a continuidade  de um roteiro que leve multidões ao final de cursos sem seriedade e de validade mais que duvidosa.

 

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Que Deus aceite a condição de brasileiro que lhe dão de tantas maneiras e, como conterrâneo nosso,  trabalhe a nosso favor, cuidando da benignidade do clima, da pureza dos ares e das águas, da fartura das colheitas. Que incuta nos governantes  o desejo de honrarem os votos recebidos; nas lideranças de toda ordem, o renascimento do respeito pelas aspirações tão simples e tão concretas do povo sem voz ; nos empresários alguma coisa como a visão social do lucro; nos que escrevem e ensinam, a sincera disposição de colocarem o objeto de seu labor em causas nobres, no benefício de todos.

            Amém, amém.

 

 

21/04/2012
emelauria@uol.com.br)

 

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