Um filme da minha idade
Um dia destes estava eu pensando em como o cinema foi importante na formação intelectual de minha geração. Muito mais do que o livro, apesar do precoce hábito de leitura, incentivado por bons professores e pela excelente bibliotecária D. Elza Leme Machado, que cultivava o salutar costume de ler os livros disponíveis e assim poder indicá-los com conhecimento de causa aos consulentes. Coisa raríssima hoje é sequer a existência de bibliotecas nas escolas públicas. Quando muito, há salas de leitura, o que desobriga a contratação de bibliotecários e delega a alguém, meio disponível, a vaga obrigação de tomar conta de livros e de eventuais leitores.
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Com meus sete anos, comecei a frequentar cinema, como empolgado assistente dos filmes seriados de caubóis, infalíveis nas matinês dos domingos no Cine Pavilhão XV de Novembro , ali na praça central, onde foi até pouco a Caixa Federal e hoje um fétido local em abandono. Já se sabia: rapaz bonitão, de rosto barbeado, roupas claras e cavalo branco era do bem, era o mocinho, sujeito de coração de ouro e merecedor, ao final, de ganhar a sofredora mocinha. Tipo mal-encarado, barbudo, sujo e de cavalo preto, o bandidão, que, mesmo levando perigosa vantagem inicial, acabaria morto ou, quando menos, preso, desmoralizado.
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A 7 de dezembro de 1941, o fatídico domingo em que os japoneses bombardearam Pearl Harbour e puseram os Estados Unidos na guerra mundial, o Pavilhão exibiu à noite um dos filmes mais esperados da temporada - A ponte de Waterloo, com Vivian Leigh e Robert Taylor, dramalhão de amor e guerra, daqueles de ensopar lenços. Fiquei impressionadíssimo com a beleza da atriz, que havia feito pouco antes ...E o vento levou, e com o fino bigode do mocinho, digno de futura e cuidadosa imitação. Leio que esse filme foi lançado no começo de 1940, o que dá bem a ideia de como as coisas demoravam a chegar por aqui. Neste caso, quase dois anos. Não é como hoje, em que o nosso sempre valoroso Cine Colombo às vezes participa de lançamentos nacionais. Em compensação... Deixa pra lá.
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Todo este intróito a propósito de Grande Hotel, filme de 1932, que só agora chego a ver, com a comodidade hoje perfeitamente possível na própria casa da gente, sem a presença compulsória de um jovem pessoal que entra e sai, conversa, ri, comenta, mete os pés na poltrona da frente, tudo ao som de pipoca mastigada e de refrigerante arrotado. Primeira impressão de encantamento: a figura algo etérea de Greta Garbo, atriz sueca que faz o papel de uma bailarina depressiva, autora da frase que a marcaria pela vida toda: “Quero ficar sozinha”. Greta Garbo. Até hoje uma das lendas do cinema mundial tanto pela beleza serena quanto pelo talento artístico. Seus filmes que mais me impressionaram, em anos passados: Rainha Cristina e A dama das camélias. Fez jus à frase que correu mundo. Manteve seu estado de reclusão, até morrer em 1990, com oitenta e cinco anos, dos quais cinquenta afastada de quase todo o convívio humano. Outro choque, a limpidez da fotografia em preto e branco, que capta até o ingente esforço necessário para esconder os vestígios da idade do galã John Barrymore, então um assumido cinquentão, nascido em 1882. Se duvidar, faça as contas, não se esquecendo de que naqueles tempos ter cinquenta anos era estar no limiar de indisfarçável velhice. John Barrymore também tinha o tal bigode fino, com certeza retocado com lápis apropriado, como vi muita gente fazer, por aqui. O papel de Barrymore era encarnar um nobre arruinado, modelo de homem educado, cosmopolita, que se relacionou interesseiramente tanto com a estenógrafa de que ainda vou falar, quanto com a bailarina decadente. Acabou morto como ladrão de joias do tal hotel. Na vida real, John, apelidado o grande perfil, sobreviveu dez anos ao grande filme: morreu em 1942. O trio dos principais do elenco era completado por Joan Crawford, então com vinte e sete anos, num papel de falsa profissional: estenógrafa. Ninguém sabe o que é isso hoje, mas o que ela aparentemente fazia era datilografar, servir de secretária a figurões ali hospedados. Na verdade, era uma jovem que topava qualquer parada por boa remuneração. Bela mulher essa Joan, que fez cinema por quarenta anos e morreu em 1977. Pouco antes disso, sua filha adotiva Christina publicou um livro corrosivo de grande sucesso de vendas: Mamãezinha querida, no qual a descrevia como uma mulher fria e calculista, com invencível obsessão por limpeza. Cheguei a ver a adaptação do livro para o cinema, com Faye Dunaway fazendo o papel de Joan Crawford.
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O tal Grande Hotel, localizado em Berlim, serviu de palco ao enredo baseado no homônimo livro alemão de grande sucesso, escrito por uma desconhecida Vicki Baum, antes camareira em dois luxuosos hotéis da mesma cidade de Berlim, que no início da década de trinta conheceu grande agitação política, social e artística, catalisadora da chegada dos nazistas ao poder, em 1933. Grande Hotel é, portanto, a descrição da vida e dos bastidores de um estabelecimento de luxo em que se cruzam os mais diversos tipos de clientes e de funcionários. Como livro, não sobreviveu ao grande teste da literatura, o tempo. Como filme passou a perfeito exemplar do cinema de boa qualidade por causa do elenco, da direção, dos ambientes, da correta fotografia, do fundo musical adequado às situações vividas. Sob o aspecto de inovação, este filme de oitenta anos inaugurou a forma pioneira de entrelaçar destinos. Foi o primeiro dos muitos filmes-ônibus, que tratam de várias histórias ao mesmo tempo. Desde o início esse entrelaçamento é sugerido pela visão “de cima” do ingente trabalho das telefonistas do hotel, conectando as mais variadas ligações dos hóspedes e para os hóspedes. O computador e o celular modificariam por inteiro a vida de todos, até mesmo nos hotéis de maior luxo. O cenário, de marcada tendência art déco, tem seu ponto principal no grande saguão de inúmeros motivos circulares, no movimento incessante das portas giratórias, no balcão redondo de recepção, no piso de mosaicos pretos e brancos, como se os personagens se movessem como peças de um grande tabuleiro de xadrez, em histórias muitas vezes inconclusas.
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A 11 de março de 1932, uma cópia de três horas de duração foi exibida a um público seleto, com a finalidade de sentir a reação causada pelo filme. Mais da metade dos privilegiados assistentes, ao término da sessão especial, pediu que a personagem de Greta Garbo se mostrasse menos sombria e menos distante. Tomadas extras foram feitas e reduziu-se em quase uma hora a duração da versão final.
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Assistir a Grande Hotel me proporcionou um salutar reencontro com o cinema que costumávamos ver em recuadas décadas: nada de efeitos especiais de som e imagem, nada de violência gratuita, de desvalorização da vida. Nada da alta tecnologia que tira o fôlego e dá às pessoas em busca de entretenimento sustos após sustos, cria desgraças após desgraças, monta impossibilidades após impossibilidades. Fundamentalmente uma viável mistura de enredos autônomos, amarrados com mestria por um diretor (Edmund Goulding) que teve a sua disposição um conjunto de bons e belos artistas, capazes até fazer o espectador transportar-se para outras terras e viver outros estilos de vida. Nada de cinema-verdade, nada de situações-limite, nada de seres vindos de outras civilizações e de outros planetas que só prometem ao homem dor, sobressaltos e aniquilação. Não que Grande Hotel não trate das misérias e das fraquezas humanas. Elas estão ali, sob as mais diversas perspectivas. Nada, porém, que obrigue os assistentes a sair por aí remoendo coisas, carregados de culpa, cheios de medo e brigados com o mundo.
21/01/2012
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