O
HOMEM DO CÉREBRO DE OURO
Estava-se falando de
como
em
outros
tempos os
alunos interessados tinham
muito
mais
oportunidades de
aprender.
Pronto! – antecipará
meu
afoito
leitor.
Lá vem uma
página de
saudosismo e de
crítica à
situação
atual do
ensino...
Nada disso. O
que vou
salientar é
que
pela
natureza do
curso
secundário,
hoje
curso de
ensino
médio, as
classes eram formadas de
muito
menos
alunos,
ainda
que no
início fossem numerosas. Lembro-me de
que no 1.º
Científico éramos 47 matriculados, reduzidos a
20 no
final do
terceiro
ano.
Nada
menos
que 27 foram ficando
pelo
caminho
pelos
mais
diferentes
motivos,
mormente as
durezas dos
conteúdos.
Conseqüência
natural desse raleamento: os
alunos
remanescentes tinham de
participar
mais, eram
mais exigidos,
mais estimulados. Muitas
aulas assumiam o
claro
aspecto de
lições
particulares,
com os
professores dando
atenções praticamente
individuais a
todos.
Foi o
que aconteceu,
desde o
começo das
aulas de
Francês.
Embora
ainda
numerosa a
classe, o
professor, Dr. Mário Xavier, disse o
mais
claro
possível,
apesar de
sua
língua plesa:
--
Quem
não tiver
interesse
em
aprender, pode
ficar
lá
pra
trás, fazendo outras
coisas
em
silêncio.
Só
não atrapalhem a
aula!
Ninguém, à
vista da democratização do
ensino
que abarrota as
classes
com
gente
que
não está
nem
aí,
hoje teria
coragem de
tomar
medida
assim
radical e
educacionalmente
indefensável.
O
fato é
que os
relativamente
poucos interessados tiveram
um
excelente
curso de
língua e de
literatura francesa,
com as
aulas dadas
em
francês.
Isso
lá
por 1947, 1948. Vimos os
principais
autores, analisamos
importantes
textos e adquirimos
permanentes
hábitos de
estudo.
Tudo
isso a
propósito de
me
haver
caído às
mãos,
recentemente, o
belo
livro de Alphonse Daudet Lettres de Mon
Moulin (Cartas do
Meu
Moinho), de
que tínhamos estudado
um
conto
em
classe – “La légende de l’homme à la cervelle d’or”,
ou seja, “A
lenda do
homem do
cérebro de
ouro”.
Aí
me acudiu à
memória
um
fato soterrado
entre
tantos: foi traduzindo
com
capricho o
belo
texto
que dei
início à
minha longuíssima
atividade
em
jornal.
A
Gazeta do
Rio
Pardo,
antes
um
modorrento
semanário
que chegara a
sair
com
página
em
branco
por
absoluta
falta de
assunto na
cidade (ao
menos na cansada
óptica de
seu
velho diretor-redator-revisor-proprietário),
recebera
um
sopro
renovador
quem sabe
desproporcional às
necessidades: saíra de
suas acanhadas acomodações à
Rua João
Pessoa (depois Francisquinho
Dias),
onde
hoje existe
um
estacionamento do
Hotel Manauara, e
fora instalar-se num
vasto
salão à
esquina das
ruas Saldanha
Marinho (agora Dr. João
Gabriel
Ribeiro) e
Campos
Sales – no
momento uma
loja
que vende
coisas à
partir (sic) de
um
real.
Adeus,
caixa de
pobres
tipos
manuais colocados no componedor
um a
um;
adeus, lerdíssima
impressora. Entrava a
linotipo
gigantesca, a
impressora
plana de
alta
capacidade,
que imprimia o
jornal
em poucas
horas e ficava
ociosa o
resto do
tempo.
Por encorajamento do
amigo e
futuro
compadre Jose Affonso Corrêa Netto,
funcionário do
jornal, levei
temeroso
meu
texto traduzido
para a apreciação do
novo
diretor da
Gazeta,
um
senhor
circunspecto e caladão, vindo de
Vargem
Grande do
Sul,
onde publicava
um
semanário chamado A
Imprensa.
Era Walter Tatoni,
que leu na
hora o
meu
manuscrito e ficou de
me
dar uma
resposta, aguardada
com a imaginável
ansiedade.
Pois
não é
que na
edição do
domingo
seguinte,
lá estava numa
página
interna,
com
destaque, a
minha
talvez
canhestra
forma portuguesa do
estranho relato de Daudet,
por
ele dedicado À la dame qui
demande des histoires gaies,
ou seja, à
senhora
que exige
histórias bem-humoradas...
Nunca vi
bom
humor naquela
triste
história.
Fiquei colaborador da
Gazeta
por
muitos
anos,
assim
como escrevi
em A
Imprensa
nos
dois
ou
três
anos
em
que lecionei no
então
Ginásio Estadual Alexandre Fleming, de
Vargem
Grande do
Sul.
Para
lá havia voltado Walter Tatoni,
hoje
nome de
avenida. Nela está instalada a
Gráfica A
Imprensa e a
excelente
Rádio Imprensa-FM,
quem sabe
ainda dirigida
pelo Pedrinho Tatoni
ou
filhos
sucessores. Na
Gráfica mandei
imprimir às
minhas
custas o
livro
Tempo &
Memória, de 1986.
Estou desenterrando
acontecimentos da
década de 50 do
século XX,
ou seja, no
milênio
passado.
***
Mais
um
evento
que
trago à
tona:
No
dia 6 deste
mês de
novembro fomos a Caconde
assistir às
cerimônias comemorativas das
bodas de
ouro dos
primos Sylvia e Levy Scali.
Gostei do
que vi na
cidade, as
ruas e
praças bem-cuidadas, arborizadas; a
igreja
magnífica e o
ato
religioso organizado
não
apenas
com
capricho,
mas
com
amor.
Lá estavam
sete
filhos e vinte
netos; estavam
outros
parentes
próximos e os
muitos
amigos do
casal.
De
pessoas contemporâneas do
casamento, havia
bem
menos do
que o esperado,
talvez
porque uma boa
parte
já esteja estudando o
que
Machado de Assis, ironicamente,
chama a
geologia do
campo-santo.
Geral a
curiosidade de se
saber
quem
era
quem,
porque o
tempo
não perdoa e
deixa as
marcas de
sua
passagem
bem nítidas
nos
rostos, no
porte, no
andar das
pessoas.
Lembrei-me de
um
diálogo
que travei há
algum
tempo
com uma
outrora
bela
colega de
ginásio.
Assim
que
me viu,
não resistiu e exclamou:
-- Márcio,
como
você está
branco!
Antes
que
ela completasse “e
careca!”,
eu
lhe respondi,
impulsivo:
--
Você
também!
Você
também!
Ela,
que ostentava uma
cabeleira
ofensivamente
pintada,
só pôde
dizer:
-- Noooossa!
Como
você está
chato!
Na
bela
recepção oferecida
em
lugar
muito
agradável,
lá
em Caconde,
em
meio à boa
comida e à boa
bebida, continuou o generalizado
estudo do
quem é
quem,
até
mesmo
entre os
parentes
que
não mantêm relacionamentos
mais
amiudados. Percebi
como os
parentescos se atenuam à
semelhança de ondas formadas
na
água de
quieto
lago:
quanto
mais se afastam do
epicentro,
mais fracas e
imperceptíveis
vão ficando.
Como
reconhecer,
por
exemplo, os
netos dos
primos?
Só restabelecendo os
contatos,
hoje
cada
vez
mais
raros,
com
aqueles
parentes
que
não constituem o
que os
estudiosos chamam de família
nuclear.
***
Sempre tem
oportunidade
pôr no
papel a
enorme
gafe
que
seu
autor
me contou no
melhor
bom
humor:
No
longínquo
ano de 1979, a
turma do Prof. Hersílio Ângelo se reuniu
para a comemoração do
cinqüentenário de
formatura na
Escola
Normal de
Casa
Branca.
Ele se queixava
para
mim,
tempos
depois:
--
Em
ocasiões
como aquela, deveria
ser
obrigatório o
uso do
crachá.
Você chegaria
perto de
pessoa
não identificada à
primeira
vista e
logo saberia de
quem se tratava.
Não tomaram
esse
elementar
cuidado
em
Casa
Branca e
meu
bom Hersílio Ângelo foi
efusivamente cumprimentado e abraçado
por
um
colega
desconhecido.
Perguntou-lhe,
muito
sem
jeito,
quem
era o
tal
que o tratava
com
tanta
amizade.
--
Puxa, Hersílio,
eu sou
fulano de
tal...
Não deu
pra
me
reconhecer?
--
Fulano de
tal?
Nunca o reconheceria...
Como a
vida o castigou,
rapaz!
***
E a
história do
homem do
cérebro de
ouro?
Um
dia
eu
conto, se
me
lembrar do
estranho
enredo.
20/11/2004
(emelauria@uol.com.br)
Voltar |