Das figurações da linguagem
Já faz um bom tempo, fui parado na rua por um velho amigo e vizinho que, meio sem jeito, me disse querer perguntar “uma coisa”. Fiquei até preocupado com o tom formal que deu à frase, logo pensando numa curiosidade que ele desejaria confirmada, ou numa indiscrição que não me caberia cometer. Nada disso, felizmente. A formalidade dele estava em que ia propor uma pergunta de caráter profissional, uma consulta enfim. No seu português muito compreensível, a que não faltava um leve sotaque árabe, apesar de tantos anos de Brasil, ele começou com uma indagação meio enigmática: - As coisas morrem ? - Coisas morrem: uma árvore morre... - E coisas como um automóvel morrem? E enquanto eu procurava penetrar o sentido da pergunta, ele me explicou: - Não entendo quando uma pessoa diz que um carro morreu. Como morreu, se não tem vida? Percebi que o problema de meu amigo e vizinho era de linguagem figurada, metafórica. Então expliquei a ele, com a possível simplicidade, que muitas vezes usamos para muitas funções a mesma palavra, até por questão de economia. - Economia de quê? - Economia de tempo, de palavras. Não só pessoas, animais e vegetais morrem, mas estrelas, estradas, carros, conversas, esperanças, ideias. - Mas para cada coisa não devia existir a palavra própria? Será que um engenheiro, um bom mecânico não sabem o termo exato para dizer que um carro morreu? - Até podem saber, mas não usam, ao menos em situação comum. Se, por exemplo, um carro morreu porque acabou a gasolina, ele pode dizer que se interrompeu a combustão. Se morreu porque a bateria arriou, ele pode dizer que se cortou a ignição, mas tudo fica muito difícil. Mais fácil dizer apenas que o carro morreu, e pronto. Ele se fez de satisfeito (quem sabe só para me agradar) e deu por encerrada a consulta. Achei interessante e rara a preocupação dele, mas a entendi. É que em matéria de linguagem tudo se assimila com naturalidade no idioma da infância, do círculo familiar estrito, da escola elementar. Alguém que deixa o país natal e se muda para lugares com línguas diferentes, pode aprender, com maior ou menor facilidade, até várias delas, mas terá enorme dificuldade em se apropriar do código de figuras de cada uma. É exatamente por isso que a maneira peculiar de cada língua construir suas frases se chama “idiomatismo”, termo em que o elemento grego idios quer dizer próprio. Daí idioma (língua própria), idiotismo ou idiomatismo (construção peculiar a determinada língua), idiossincrasia (temperamento particular). Que sentido teria, por exemplo, alguém dizer em inglês to break the branch? Nenhum. Apenas seria a frustrada tentativa de traduzir o nosso intraduzível quebrar o galho, ou seja, dar uma solução mais fácil para casos difíceis. Em inglês deve existir uma frase idiomática para explicar a mesma intenção. Conheço uma vasta coleção de frases que vertem para o inglês, palavra por palavra, certas expressões populares nossas, com efeitos errados, mas ao menos engraçados. Chama-se adequadamente the cow went to the swamp, ou seja, “a vaca foi pro brejo”. Está no site do Millôr, na internet. Gostaria, apenas gostaria, de contar algumas histórias relacionadas com a dificuldade que tem o estrangeiro em assimilar as particularidades de uma nova língua. Estou lembrando, apenas lembrando, a do alemão que muito teve de se aplicar para entender o problema do uso dos artigos em português. Depois de muito ser corrigido na difícil questão de empregar o e a, teve finalmente a oportunidade de corrigir a frase de um brasileiro, em português. (Quem conhecer pode rir. Quem não conhecer, paciência. Só digo que o tal alemão achou que a frase “Acuda a velha” estava erradíssima...) Contável é a do inglês que se aplicara com afinco ao estudo do português, mas se queixava a amigos a respeito da pobreza de nossos dicionários: - Procuro uma palavra e não encontro em nenhum deles. - Que palavra, por exemplo? - Ondex. - Ondex? - Isso. Ondex. - Nós empregamos isso? - Sim, vocês dizem: “Ondex foi?” – “Ondex esteve?” Depois de dar tratos à bola um dos amigos adivinhou: - É assim que nós falamos depressa “Aonde é que você foi?” – “Onde é que você esteve?”... Cheio de razões o inglês. Não há dicionário que consigne expressões do tipo “cumequié”, “cequissabe”, “taí”, aglutinações correntes de “como é que é”, “você é que sabe”, “está aí”. Quem sabe um dia? Sim, porque ao longo dos séculos, fenômenos de redução de sintagmas ou frases ocorreram. Quem hoje, sem estudar historicamente a evolução fonética, diria que o termo freguês tem algo que ver com a expressão latina filius ecclesiae, filho da igreja, para indicar que tal pessoa foi batizada num determinado templo? Reminiscência desta origem está na expressão ainda em uso: “freguês desta paróquia” e em freguesia, no sentido de comunidade que frequenta determinada igreja. Na cidade de São Paulo, há o bairro da Freguesia do Ó, ou seja, constituído em torno da igreja dedicada a Nossa Senhora do Ó. Agora, por que Nossa Senhora do Ó – é outra história. Mas voltando à morte do carro. O verbo morrer, por si só, assume dezenas de significados específicos. Cito algumas: morrer o grito na garganta, morrer o sol à tarde, não morrerem as idéias dos filósofos, morrer o brilho nos olhos, morrer na praia, morrer por saber o segredo da amada, morrer na conta, morrerem os sonhos da juventude... A afetividade da idéia de morrer, então, pode ser expressa num mundo de frases, algumas idiomáticas, outras encontráveis em outras línguas; umas que amenizam o sentido (eufemismos), outras que o vulgarizam (disfemismos). Entre os primeiros: entregar a alma ao Criador, adormecer no Senhor, render o espírito, ir para a mansão dos justos. Entre os segundos: apagar, apitar na curva, abotoar o paletó, bater com as dez, dar com o rabo na cerca, ir para a Cucuia, vestir o pijama de madeira... A relação é quilométrica. Seu uso dependerá da relação emocional que o sujeito falante mantenha com determinado morto. Além disso, existem diferenças semânticas notáveis entre morrer (ideia genérica) e finar (morrer aos poucos), falecer (morrer pacificamente), perecer (morrer de modo violento), sucumbir (morrer depois de muito sofrimento). Como não percebeu meu bom amigo e vizinho, ele apenas levantou o véu de questões muito complicadas.
20/08/2011
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