Cultura de almanaque,  domingos de junho, música boa

 
 O Crepúsculo das Macaúbas
(Foto de Márcio José Lauria FILHO)

 

 

Aí, no título, está uma expressão perfeitamente depreciativa. Nestes tempos de pós-doutorados, dizer-se que alguém tem cultura de almanaque é ofensa grave, daquelas catalogadas como crimes contra a honra cultural, porque reduz a vítima a mera sabedora de coisas pela rama, sem profundidade.

Ao se cunhar a expressão, pensava-se com justa razão naqueles livretes distribuídos de graça a cada começo de ano, quase sempre por farmácias. Neles, entre anedotas inocentes ou curiosidades inverossímeis,  ensinava-se a tirar manchas de roupas, dava-se a tabela dos dias favoráveis à pesca ou ao plantio disso e daquilo. Alguém há de se lembrar dos almanaques do Biotônico, da Saúde da Mulher, do Jeca Tatu. Neste último, o gênio criativo de Monteiro Lobato ensinou mais sobre doenças endêmicas do que qualquer campanha oficial de saúde pública. Para evitar o amarelão, por exemplo, até as galinhas e os porcos andavam calçados. E tomavam Ankylostomina Fontoura, é claro, fabricada pelo amigo Candinho Fontoura, o mesmo que inventou o Biotônico, ainda à venda, com menor dosagem de álcool do que na fórmula original de tanto sucesso, como abridor de apetite...

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Hoje, poucas dessas raridades em modestas brochuras sobrevivem, mesmo porque se deu a saturação de informes, de tal modo que até pessoas de poucas letras sabem de tudo pela rama, porém em tempo real.  Previsão do tempo,  assunto em que qualquer almanaque de prestígio arriscava palpites com meses de antecedência, hoje é com falível pretensão científica divulgada pelas rádios e pela televisão, com validade máxima de algumas horas, através de dados colhidos por satélites especiais. Nem por isso, lá uma vez ou outra, as previsões  deixam de errar redondamente. Como dizia a preta velha Leopoldina, quem sabe do tempo é Deus.

Você já observou como os locutores ficam aborrecidos, quase pedem desculpas ao público, quando anunciam chuva num final de semana? É costume passar a falsa noção de  que com chuva, os sábados e domingos não serão aproveitáveis, como se as fontes, os rios, as lavouras, as pessoas, os animais dispensassem  a água dos céus só porque haverá transtornos e modificações nos planos  de quem, morando em grandes cidades, não via a hora de sair momentaneamente do barulho e da poluição, fugindo para a praia, para o campo, para a serra...

Nos meios de comunicação é uma espécie de pecado anunciar-se que o tempo será chuvoso. No máximo, o aceitável  estará em predizer-se que o tempo será instável, às vezes com períodos de melhoria. Dourando-se a pílula, como se vê.

  De acordo com aqueles decrépitos almanaques, nunca choverá em junho e sempre fará frio – o que não é verdade. Temos vivido junhos calorentos e até chuvosos. Temos tido domingos com sol pleno, com sol interino, com chuva branda, com aguaceiros. As estações andam perplexas, admitindo em qualquer mês do ano a existência de dias pesados, daqueles que exigem a convocação de um adjetivo erudito como plúmbeo. Dias plúmbeos, domingos plúmbeos – com a cor e o jeito do chumbo.

 Mas há que se aproveitar um dia plúmbeo, tão contra a limpidez de nosso céu e a claridade de nossa latitude. Dia completamente antitropical.

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Como alguém  já se cansou de explicar, os trópicos (os tristes trópicos , na feliz expressão de Lévy Strauss – o único sujeito que teve a coragem de dizer que a baía de Guanabara  era feia),  os trópicos não são de produzir eminentes pensadores, filósofos profundos. Dar com a essência última das coisas muito tem a ver com solidão, recolhimento, ausência de tentações de interromper leituras e congeminações, em troca de boa praia, de alegre cervejada, de interminável papo numa roda de amigos. E  salutar forma de recolhimento é ouvir música, daquela música que não impeça ler ou escrever.

 Acumulei através de algumas décadas um vasto repertório de todos os gêneros, desde a chamada música de raiz até o erudito mais pretensioso ou difícil.

Não bastasse isso, ainda há pouco tempo o meu amigo e colega Benedito Martinussi

me presenteou com todo o seu rico acervo de LPs clássicos. Serão necessários meses para se conhecer tudo aquilo, fruto de anos e anos de lenta apuração do gosto.

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Um dia destes, ouvi com renovado prazer o CD Som da terra, com maravilhas gravadas pelos afinadíssimos Pena Branca e Xavantinho. Que interpretações! Lá está uma das mais notáveis criações de anônimos autores – Cuitelinho (sinônimo regional de beija-flor), que o recentemente falecido Paulo Vanzolini (aquele de Ronda, lembra-se?) recolheu nas barrancas do rio Paraguai e a registrou, dando parceria ao cantador que a mostrou pela primeira vez.  As rimas são todas em –aia,  a última estrofe acrescentada pelo próprio Vanzolini:

 

 A tua saudade corta como aço de navaia

O coração fica aflito, uma bate, outra faia,

Os zoio se enche d’água

Que até a vista se atrapaia, ai, ai.

 

Poesia da melhor qualidade, presente também em O cio da terra, de Mílton Nascimento e Chico Buarque. Como se esquecer de Cálix bento, recolhido do folclore religioso mineiro por Tavinho Moura?

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Põe-se a rodar, por violento contraste, a Obra de piano,  de Claude Debussy, por Noël Lee, conjunto de quatro CDs, gravado na Dinamarca pela Audivis-Valois, em 1971.Vem com elucidativo livrete, nada semelhante ao antigos almanaques.

Se na Argentina dizem que Carlos Gardel canta cada vez melhor, se nos Estados Unidos milhares de fanáticos não admitem até hoje a morte de Elvis Presley, não será demasia dizer que Debussy é cada vez mais Debussy, mesmo no sovadíssimo Clair de lune , que, bem traduzido, não passa de luar, mas guarda na pronunciação francesa sugestões de uma lua transcendental que vence lenta a linha do horizonte e prateia vagarosa o silêncio de uma paisagem de sonho verdadeiramente lunar.

Encanta mais uma vez a preguiçosa e satisfeita sensualidade de uma flauta que insinua as delícias da modorra do Prelúdio à tarde de um fauno.

Debussy, como os simbolistas na literatura,  é também mestre na difícil arte de nomear, de batizar suas visões impressionistas. Daí, a majestade da  Catedral submersa, a rumorosa alegria da Manhã de um dia de festa, a refrescante sensação dos Jardins sob a chuva, o silêncio fofo dos Passos sobre a neve.

“Eu não conheço outra regra que não seja o meu próprio deleite”, rebate Debussy à crítica de seu professor de harmonia, que lhe fazia advertência sobre os perigos do uso da liberdade imaginadora. Alguém por acaso guardou o nome do professor de harmonia de  Claude Debussy? Debussy continua vivíssimo.

Sua música é de céu e de água, de perfumes  e de cores e – estranhamente – vazia da  presença humana. É ele um paisagista de olho poético, para quem o homem não passa de intruso no concerto universal.

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O que é que você faria se recebesse um cartão-postal de uma cidade qualquer da Espanha? Provavelmente nada;  quando muito um formal agradecimento. Pois Debussy, que jamais viajou à Espanha, recebeu de Manuel  de Falla, o estranhíssimo e genial compositor da  Dança ritual do fogo, Debussy recebeu um cartão-postal colorido de cidadela solitária dos mouros de Granada. Ornado de relevos em cores e sombreado por grandes árvores, lá está o monumento de Alambra, em contraste com o caminho de luz, visto  através da perspectiva de um arco da construção. Foi precisamente a intensidade dessas oposições de luz e de sombra que surpreendeu Debussy: traduziu essa surpresa pelo som plangente de uma guitarra que trama contrastes de extrema violência e de apaixonada doçura. Foi preciso passarem-se muitos anos para que outra voz, a de García Lorca, expressasse pela poesia o que Claude Debussy captara em La puerta del vino.

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Só Debussy também cansa. Numa espécie de prólogo de um tango revolucionário de Astor Piazzola, escuta-se grave queixa. Grave e antiga, posta  no papel por um tal Lupércio Leonardo de Alquinzola, que viveu entre 1559 e 1613. Traduz  com perfeição o que me deu para pensar na clara manhã de segunda-feira, tão diferente de plúmbeos domingos:

“Porque este céu azul que todos vemos, nem é céu, nem é azul. Lástima grande que não seja verdade tanta beleza”.

 

20/07/2013
emelauria@uol.com.br

 

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