Memória materna

 
Mãe e filhos. Foto de 1940

  

Vejo hoje minha mãe como um frágil corpo sustentado pela força do espírito. Se para ela a fé não remove montanhas, ao menos endireita os caminhos. Se removesse montanhas, ela andaria, ela enxergaria.

“Noventa e oito anos?” Ela mesma se espanta cada vez que eu lhe digo esse pesado número: “Noventa e oito? Tudo isso? Pra que tanto, meu Deus?” Ainda bem que ela se esquece logo do seu próprio espanto. Indagada sobre quantos anos ela acha que tem, suas respostas variam conforme o humor.

- Mais de cinquenta?

- Ah, sim, mais de cinquenta.

- Mais de setenta? Tanto assim? Acho que não.

(Se ela se lembrasse de quantos eu tenho, ficaria mais desorientada ainda.)

- Mais de oitenta? Ih, não sei nem quero saber!

As limitações só aumentam dia após dia. Até os noventa, aquela fortaleza. No dia de seu aniversário, encantou pela disposição física e mental as mais de cem pessoas que vieram comemorar com ela num almoço que só pôde reunir a parentada mais próxima. O irmão caçula sobrevivente, dois anos mais novo. O filho e a filha, a nora e o genro, netos, bisnetos. A sobrinhada toda. Filhos de sobrinhos, sim, alguns. Mas netos de sobrinhos, não. Se não se pusesse um limite nos círculos familiares, a contagem das pessoas bateria lá perto dos duzentos.

Ah, sim, a gradativa perda de visão. As pessoas inteligentes até se adaptam a isso, decorando a posição dos objetos à sua volta. Chegam a fingir que estão enxergando alguma coisa, quando na verdade tateiam por onde caminham, evitam ir a lugares diferentes, aprimoram o faro, prestam mais atenção às falas.

O especialista e seu tom categórico:

- Olhe, a retina de sua mãe é como um saco de estopa cada dia mais esgarçado.

- O que é que se pode fazer por ela?

- Vitamina, dar muita vitamina.

- Alguma esperança de melhora?

- Nenhuma, apenas a segura sensação de estar sendo cuidada, de um bem-estar reconfortante.

Depois da queda e da fratura do fêmur (com operação, pinos e tudo), a autonomia definhou. O longo aprendizado de usar o andador, o medo de cair e o lento processo de desaprender de andar, como o peixinho de Lobato que desaprendeu de nadar. A inutilidade do andador e a entrega à cadeira de rodas.

Aí os AVCs cada vez mais constantes. As atenções redobradas, a dedicação sincera daquelas cuidadoras que não a deixam jamais sozinha, dia e noite, semana a semana, mês a mês, anos a fio. Umas beneméritas.

Um dia destes, isquemia  mais grave. A trigésima ou a quinquagésima?

O médico de família vem na mesma hora. Examina, mede, ausculta. Mais uma vez a revelação:

- Pressão sanguínea, onze por seis. Batimentos cardíacos, sessenta e oito. A máquina é boa. Ela vai longe... Vamos interná-la, aplicar soro.

- Não dá para aplicar o soro aqui em casa?

-  Dá... Pode ir atrás de quem aplique...

O soro lhe fez muito bem, restituiu-lhe o ânimo, a cor.

Ela tem seus casos para contar, uma, duas, vinte vezes com pequenas variações. Canta umas cantigas de outros tempos. Gosta mais de uma que a irmã Teresa cantava: Oh! que triste vida a do boiadeiro, trabalhando tanto sem ganhar dinheiro. Oh! que triste vida, oh! que sorte amarga, eu trabalho mais que  um burro de carga...

Não se lembra do marido, da filha que morreu mocinha. Não se lembra  nem das alegrias nem dos sofrimentos de uma vida toda. Faz tremendas confusões com os netos, mesmo aqueles que ela ajudou a criar. Quando um deles chega, diz quem é, faz-lhe muita festa, ela retribui, entra no clima... Minutos depois, tudo se esvai da sua memória.

Mas sabe de cor as orações aprendidas na infância (algumas em italiano) e repetidas pela vida a fora. Gosta de rezar o terço, de ouvir homilias pela televisão. Comunga uma vez por semana e solicita de quando em quando a presença de um padre do São Roque.

Um dia destes, recebeu a visita da amiga, um tanto mais nova do que ela. As duas são deixadas sozinhas por certo tempo, na esperança de que a visitante  a traga para mais perto do seu mundo.

Ela praticamente só ouve, enquanto a visitante fala, conta coisas, dá receitas.

Ao sair, a visitante, eufórica, comenta comigo:

- Foi ótimo ver sua mãe, conversar com ela, pusemos os assuntos em dia...

Antes fosse, antes fosse. A visitante, surdíssima, não ouviu uma só palavra das poucas que lhe deve ter dito minha mãe. Em compensação, meia hora depois lhe pergunto como tinha sido a prosa com a amiga.

- Que amiga? Não veio ninguém aqui hoje.

(No seriado de TV em preto e branco – “Perdidos no Espaço”, havia um robô que de vez em quando emitia importante mensagem: Sem registro, sem registro.)

É isso, sem registro. Tirando o medo de ficar sozinha, a exigência de hora certa no servirem um chazinho com bolachas, o bom apetite às refeições tão balanceadas, o excelente sono – não menos de quinze horas por dia/noite --, a vida lhe vai fluindo rotineiramente. Repete pela enésima vez o mesmo relato, quase sempre com sinais de temor reverencial pelo pai, mais vivo na lembrança dela do que qualquer outra pessoa:

- Meu pai era muito bravo com todos os filhos. Quando minha mãe ficou doente, eu ainda era quase uma menina, ele me chamou e disse que era para eu aprender a fazer o serviço de casa. E eu aprendi e fiz.

Uma vez nós estávamos com umas visitas na sala de casa. Aí meu pai chegou perto de nós, deu corda ao relógio de bolso, e disse que eram nove horas e que ele ia dormir. Deu boa-noite a todos. Nós ficamos por ali, falando baixinho. Meu pai apareceu dali a uns minutos e disse: “Eu já dei boa-noite a todos e disse que ia dormir. Vocês devem ir também!”

O grande presente que ela gostará de receber amanhã, 16 de janeiro de 2008, seu nonagésimo nono aniversário, será que fiquemos ali perto dela, segurando sua mão. O mais, por valioso que seja ou por melhor intenção que revele, não terá registro.

 

P.S. – Minha mãe, Luiza Bertocco Lauria, a D. Zinoca, faleceu tranquilamente a 29 de maio de 2008. Completaria cem anos a 16 de janeiro de 2009.

 

20/06/2015
emelauria@uol.com.br

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